Quatro dicas para identificar problemas no próprio texto
Uma infinidade de escritoras e escritores, em algum momento de suas vidas, já pronunciou a sentença “escrever é reescrever”. É muito romântica a ideia de batalhar com um texto, passar dias pensando em cada uma das palavras, testar diferentes pontos de vista, diferentes linguajares e alternativas de enredo para a história que se quer contar.
É mesmo uma das partes mais estimulantes do processo de escrita, mas também é inegável que dá uma trabalheira. É o momento em que fico mais obcecada com o texto, penso nele, sonho com ele, incluo ele nas conversas de mesa de bar (virtual) sem que ninguém tenha me perguntado nada.
Esse mergulho no texto, apesar de adorável, acarreta o problema bastante comum da perda de referencial. A determinada altura, acabo sempre questionando: será que estou melhorando ou piorando tudo? Os defeitos do texto se transformam em pontos-cegos que não consigo enxergar. Esse é o momento, então, de respirar fundo, e ser racional.
Organizei uma sequência de dicas que sempre me auxiliam e que podem te ajudar também a destrinchar o seu texto para identificar possíveis problemas escondidos bem debaixo do nariz.
1. Traia o seu texto com outro
A primeira dica de 100% das escritoras e escritores é deixar o texto descansar. Não adianta, não há fórmula mágica aqui. É dar tempo ao tempo, deixar que o texto decante dentro do seu cérebro.
Eu sei disso, você já sabe disso. Nós já fizemos isso. Mas, se você é como eu, você não conseguiu esquecer nenhuma das linhas que você criou, nesse meio tempo. É um problema muito sério, ainda mais quando há prazo para entrega, porque nos vemos incapazes de relê-lo com um olhar fresco.
Por isso, acrescento: deixe o seu texto de lado e comece a escrever outra coisa — de preferência, completamente diferente. Se seu texto é em primeira pessoa, comece um novo em terceira. Se tem um enredo linear, escreva algo de trás pra frente.
Não há nada como um novo amor para abrir os olhos aos defeitos do antigo.
2. Corte as sobras
Aprendi a cortar frases e palavras do meu texto numa oficina com Paulo Scott, autor de Marrom e Amarelo. Na realidade, ainda estou aprendendo essa arte maravilhosa da concisão, um exercício parecido com alongamento: no começo nos sentimos duros e incapazes, mas a prática vai nos deixando mais soltos, dentro das nossas capacidades. Um dia, quando menos se espera, ganhamos a coragem de cortar um parágrafo inteiro, de eliminar um personagem, de excluir aquela frase bonita e genial que, infelizmente, destoa do tom geral.
Uma outra grande defensora da faca é a Beatriz Bracher, autora de Anatomia do Paraíso, para quem os cortes são uma atividade mais artística do que o primeiro jorro de escrita.
Escrevo e limpo muito, gasto muito mais tempo limpando o texto do que com a sua primeira escrita. E sinto que sou mais artista quando limpo do que quando escrevo, (…). Escrever é separar um bloco de pedra. E revisar é limpar, é realmente começar a esculpir aquilo que já está determinado. (Beatriz Bracher no Jornal Rascunho)
Eu, fã de carteirinha tanto de Scott como de Bracher, assino embaixo. Mas como é possível enxergar o que deve sair do que merece ficar? Bem, quem responder essa pergunta pode pegar a ficha para o céu, porque descobriu o grande segredo da literatura. Não sou essa pessoa, mas utilizo algumas questões muito úteis, especialmente depois de ter passado um tempo traindo o meu texto com outro. São as seguintes:
- este item — seja ele um objeto, um adjetivo, um advérbio, ou mesmo uma atitude do personagem — está passando uma informação relevante para a história? Se o removesse, a minha história mudaria? Se a resposta for não, corte;
- este personagem secundário influencia meu personagem central de alguma maneira imprescindível e relacionada ao conflito? Se o removesse, a minha história mudaria? Se a resposta for não, corte;
- este trecho é explícito quanto às minhas intenções de subtexto, expondo letra por letra qual o conflito ou o que exatamente está pensando a minha personagem, de um jeito que não deixa margem para interpretação? Se a resposta for sim, corte.
Com apenas essas questões em mente, você vai conseguir extirpar boa parte das sobras no seu texto.
3. Liste as ações da história
Aprendi a importância da clareza do enredo durante a oficina com o Prof. Assis Brasil. Pense bem: as histórias mais lembradas, as que consideramos mais bem contadas, em geral, são as que se apresentam de maneira mais simples. A complexidade costuma pertencer ao campo do subtexto — um campo que, por mais que utilizemos toda a nossa gana para dominar, sempre será uma área de intersecção com a autonomia do leitor.
Por isso, quanto mais clara for a organização dos eventos, maiores são as chances de você e o leitor chegarem a um denominador comum, aumentando essa área de intersecção.
Então, não considere perda de tempo essa dica: liste os acontecimentos da sua história minuciosamente, evitando preencher lacunas com informações não ditas no texto. Se tiver dificuldade, peça para alguém fazer isso para você. Se, em algum momento, você ficar com dúvidas sobre o que aconteceu de fato, existe aí um trecho para reescrever.
4. Identifique o conflito e onde ele aparece pela primeira vez
Uma vez, anos atrás, submeti meu texto a um leitor muito importante para mim. Recebi como resposta algo do tipo: “você tem algumas frases muito bonitas, mas a certa altura me cansei de ler porque a personagem parece estar fazendo coisas a esmo, e a história não caminha para lugar nenhum”.
Fiz muito drama depois desse retorno, mas serviu para que eu aprendesse uma lição importante, reforçada também pelo prof. Assis Brasil no seu livro, Escrever Ficção: cenas devem intensificar conflitos. Parece o tipo de regra irredutível e limitante, mas é bem o contrário. Ela traz em si um fundamento prático real: queremos ver a história andando.
Mas antes de sair revisando cenas e se escabelando porque você não tem certeza se elas realmente intensificam o conflito da sua história, pergunte-se:
- tenho certeza de qual é o meu conflito?
- ele aparece já na minha primeira cena?
Em outras palavras: estou enrolando para começar a minha história? Isso é um problema muito comum e geralmente negligenciado. Então, pode valer a pena cortar ou reescrever o começo do seu texto para que ele desemboque o mais próximo possível da apresentação do conflito.
Depois de seguir essas dicas para melhorar sua narrativa, você possivelmente vai ter em mãos um texto limpo, que transmite clareza e anda bem.
Mas não se engane: nenhuma dessas dicas é de simples aplicação. Tudo aqui demanda dedicação, prática e paciência. É muito difícil enxergar as falhas da nossa própria criatura, para o que um outro olhar pode ser bastante benéfico. Por esse motivo, muitas autoras e autores buscam oficinas literárias onde podem debater seus textos ou chamam pessoas especializadas para fazer uma leitura profissional.
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