n.3 | ano 1 | mar 2022

movência

Anarruth Corrêa

Lulu andava de um lado para o outro toda afobada. Jogava panelas que tilintavam ao toque umas das outras. Os pratos dançavam no escorredor, num ritmo perigoso de corpos sensíveis e quebradiços, quando amontoados sem delicadeza. Com suas facas afiadas, descascava os legumes, desossava o frango e cortava as peças de carne com maestria. Sabia cada ponto de corte de bicho e de gente; nas suas mãos, as peixeiras obedeciam cegamente. Aferrava-se aos seus instrumentos cortantes e não deixava que os imprudentes se aproximassem. Naquele território só ela mandava e ninguém se atrevia a mexer nos seus domínios.

Naquele dia, não conseguia se concentrar em nada. Desviava o pensamento dos afazeres e ficava matutando os versos, que sabia de cor, da dupla de cantadores que iria se apresentar no terreiro da casa de Zé da Viola.

A dupla de repentista mais famosa da redondeza era o assunto que circulava de boca em boca na cidade. Elogios vinham de todos os lados. A admiração era geral, pelas modinhas e versos improvisados, entoados pelos cantadores.

Logo hoje, ruminava Lulu, entre um afazer e outro, tinha que ficar com a diabinha até a mãe voltar do cenáculo. Daria um jeito de carregar a pestinha, nem que fosse amarrada. Com essa ideia fixa, jogava os legumes no caldeirão, experimentava um pouco e, com sua experiência de cozinheira de forno e fogão, se dava por satisfeita. Olhava o relógio suspenso na parede, querendo reter os ponteiros, encompridar o tempo e poder se enfeitar com esmero para o grande acontecimento.

Não era nem bonita e nem feia. Rosto arredondado com manchas amarronzadas, lábios mais pro fino do que pro grosso. Olhos miúdos, sem muita expressão. Já o corpo, apesar de uma postura envergada, escondendo os seios protuberantes, atraía os olhares enviesados da tropa do quartel. Tinha a fama de mulher geniosa, mas o que ninguém desconfiava era que Lulu não gastava tempo com conversa fiada e, quando convinha, era brava como diabo.

Gostava dos programas de televisão, principalmente os desfiles de misses. Aprendeu a ler e escrever na cozinha com o incentivo de todos da casa. Nas poucas folgas, lia nas revistas as histórias dos astros do rádio e da televisão e se sentia cada vez menor. Sua angústia aumentava. Não era de fazer planos, mas sonhava em ser alguém diferente ou quem sabe uma daquelas artistas; nesses devaneios, suspendia os peitos, ficava de perfil diante do espelho desbotado e na pouca luz do seu minúsculo quartinho, se achava digna de aparecer na televisão. Dava suspiros acariciando os rostos dos galãs estampados nas revistas de fotonovela.

O sino da Matriz badalou a hora cheia do anúncio do Ângelus. Gorete na sua esperteza de adolescente sorvia a canja de galinha em pequenos goles. Ficava atenta aos sinais de impaciência vindos da cozinha e não conseguia disfarçar um certo prazer ao irritar, ainda mais, Lulu. Na sua manzanza, não percebeu a figura toda arrumada bem ao seu lado. No seu melhor traje, estava ela com as bochechas rosadas de ruge, boca vermelha, vestido florido, cintura bem-marcada e sinuosamente decotado.

 

 

Ela me apressava. Eita, que negócio chato danado. A aflição de Lulu era tanta, mas claro que eu sabia o motivo. Ela queria pegar um lugar próximo aos cantadores, na primeira fila. Aí, ela ralhava e colocava a culpa na minha mãe que a obrigava a me levar como um peso morto. Na minha má vontade, eu retardava a saída, embromando e remanchando. Só escutava os resmungos dela: “Lenta como uma preguiça, engula logo essa sopa, prenda o cabelo.” E eu fazia ouvido de mercador e continuava a fazer corpo mole. Ela não me dava trégua. Com a mesma habilidade que tinha com a peixeira, trançava meu cabelo, repuxando com força como quem doma uma crina de cavalo selvagem. Reclamar não adiantava. Vingança era o que eu planejava.

Dado o serviço por terminado, apertou minha mão e me arrastou. Resistir era inútil. Tinha que ir mesmo. Seguimos as duas ladeira abaixo quase a galope. Lá chegando, Lulu procurou um tamborete e se sentou bem na frente dos tocadores de viola. Tentei fugir, mas fui agarrada pela trança e continuei sentada, junto dela. Cruzei os braços emburrada e fiquei ali prisioneira.

Os violeiros começaram a cantoria. Não sabia bem o que era aquilo. Parecia aboio. Não, não era. Algo como um lamento provocativo, onde um dizia uma coisa e outro replicava. Eram versos improvisados numa movência cadenciada, mas de uma chatice muito grande, e Lulu toda embevecida pela cantoria.

Por falta do que fazer comecei a prestar atenção nas violas, nos rostos e nos versos recitados pela dupla de repentistas. As pessoas, como Lulu, vibravam a cada improviso, nas respostas que cada um dos cantadores entoava um para o outro. Admirei o esforço que cada um fazia naquela cantilena de desafios para ver quem se saía melhor. A admiração era geral e até eu me empolguei um tiquinho de nada. E foi aí que Lulu, do alto de sua timidez soltou um mote:

Vou sofrendo de amor
tão perto e tão longe
tão pouco, e tanto…

 

 

Gorete olhou espantada para ela, que estava vermelha e suando. Fez-se um instante de silêncio e o apologista incentivou a provocação. “E aí, violeiros! Vão encarar o desafio ou vão fugir da parada?” Lulu, arrependida, baixou a cabeça para não ser notada, como se fosse possível.

 

 

Na minha arrogância adolescente e como forma de vingança aproveitei e gritei, apontando: “Foi ela, foi ela que falou.” Um belo de um beliscão mordiscou meu braço, puxei-o, rindo do vexame dela que tentava disfarçar seu embaraço.

O violeiro da esquerda na sua voz fanha iniciou o repente elogiando a formosura da dama que deu o mote. O segundo insinuou que o companheiro tinha uma queda pela vistosa dona. O outro respondeu que diante de tão bela senhorita não seria uma queda, mas uma levitação. “Então, nobre colega”, respondeu o outro, “seja homem e convide a madame para uma prosa”. O cantador se levantou e numa mesura respondeu:

Ainda sou novo,
pra moça bonita namorar
Fazer versos aos teus pés
é sina de cantador
você pode acreditar
De coração meu poema é efeito
pra teu coração conquistar
na festa de Santana
te namorar
e ao luar te abraçar

 

A plateia foi ao delírio e as cordas das violas deram acordes mais altos. Entusiasmada, fiquei de pé e falei: “Ainda falta muito tempo pra festa acontecer.” Os presentes de pronto concordaram e o repentista mais velho provocou com um trocadilho:

ou é pra já
ou a donzela arribará.

O violeiro intimidado, mas sem perder a pose replicou:

o compromisso foi selado
nesta noite memorável
com esta moça adorável
num abraço atrelado

 

 

Lulu corada e lisonjeada com os minutos de fama que obteve, acreditou nos versos do improvisador. Os violeiros, como se não tivessem mais nada o que dizer, dedilharam as cordas de suas violas, num lamento estridente. Os arroubos juvenis sempre servem para aplacar constrangimentos. Gorete na sua empolgação subiu no banco e começou a aplaudir e saudar, dando viva aos violeiros, onde foi acompanhada por quem estava assistindo e até os moleques da rua foram ver a algazarra que se formou.

Gorete foi interrompida e puxada para baixo por Lulu. Obedeceu feliz, era o fim da cantoria.

Por alguns dias, Lulu aquietou-se no seu desejo de sair mundo afora. Os versos repercutiam em sua cabeça como num refrão na espera de se fazer realidade.

Os festejos de Santana começaram e a agonia voltou a reinar na cozinha. Os bolos e doces degringolavam e Lulu, neurastênica, esperava, esperava, esperava; quando recebeu um bilhete anônimo, dizendo que o tal cantador estava de rabicho com outra dona. Se quisesse comprovar era só ficar escondida atrás da igreja e ver com seus próprios olhos. Leu e releu, durante todo o dia, as palavras cravadas, não só no papel, mas na sua carne. Lágrima não derramou. Silenciou. Fingiu que não passava bem e não foi para festa com os outros. Mais uma vez, se arrumou com o seu melhor vestido, fez um coque e fixou com bastante laquê, calçou os sapatos pretos e colocou um cinto largo de couro.

Abriu a porta, respirou e lá ficou. Decidida saiu em direção aos fundos da igreja. Ficou escondida da luz amarelada do único e solitário poste. Esperou, dessa vez, pacientemente. As horas andaram e nada acontecia. Impacientou-se. Mas, para sua surpresa, escutou uns murmúrios e esticou o pescoço, arregalou os olhos e viu os dois se engalfinhando um no outro. Apenas um corpo. Um penetrado no outro. Seu corpo, adormecido, respondeu, e sua boceta tremeu e ficou toda molhada. Sua mão sôfrega se enfiou por entre as pernas e um calor se espraiou dentro de si. Sufocou um grito, inclinando a cabeça e mordendo o ombro. Com a outra mão, desembainhou a peixeira da cintura e cortou a calcinha, dando liberdade para penetração de seus ágeis dedos no muco pantanoso, irradiando uma descarga orgástica por todo o seu corpo. Passou uns segundos mergulhada em um bem-estar nunca sentido antes. Recuperada do seu gozo, olhou para o aço vibrante em sua mão e para os amantes ainda em desalinho, empunhou a faca e foi em direção aos dois. O casal entorpeceu diante daquela visão. Lulu apontou a faca para si, rasgou o vestido e se jogou entre eles. Lambeu e chupou com um frenesi insaciável os corpos nus, suados, quentes dele e dela, num ardente desejo de prazer, ódio, vingança. Sugou ardentemente a boca da outra e alucinada capou, com um único golpe, o repentista em pleno êxtase. As duas completaram o coito, se vestiram e rumaram em direção à vida.

Na casa, os rostos aparvalhados com os relatos que chegavam desconexos, ruidosos: o vexame da situação silenciou a todos, menos Gorete, que às escondidas escutava as histórias contadas na sala, na cozinha e nos quartos. Perguntava, ninguém lhe dizia nada. Montou o quebra-cabeça com os nacos de conversas ouvidas e rompeu o silêncio espantoso: “Ela arribou e levou consigo os possuídos e a amante do traidor”.

 

Anarruth Corrêa

Sou Anarruth Corrêa, paraibana de nascimento e alma genuinamente recifense. Apaixonada por literatura e uma aventureira no brincar com as palavras na contação de histórias. Escrevo para espantar os demônios que permeiam a minha existência. Colada à escrita tenho uma longa carreira na área educacional, com formação em Letras, Pedagogia, FAFIRE e o UFPE com Especialização em Qualidade na Educação Básica pela OEA, com TCC voltado para o desenvolvimento da leitura e escrita para crianças e jovens. Estudiosa, leitora, apreciadora de cinema e com um perfil humanista, voltado para a construção de uma sociedade justa para todos. Por isso, optei e a vida me conduziu para o trabalho educacional, seja no âmbito privado ou público e, agora incentivada pela participação em cursos de escrita, estou mergulhada na produção de contos recheados de experiências sensoriais dos meus estados queridos, Paraíba e Pernambuco.

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