n.8 | ano 2 | jan e fev 2023

Torres gêmeas

Tiago Germano

“A CULPA NÃO É SUA. Eu te amo. Adeus.”

                 E correu rumo ao abismo.

 

Há dias Malena vinha desconfiando da insistência de Joel em levá-la para um local isolado e ensiná-la a dirigir. Olhava para os espelhos laterais do carro e recusava-se a acreditar nas marcações da pista. “São pequenas demais”, dizia, comparando os automóveis a elefantes num corredor, se cruzando em alta velocidade. Joel então bufava e puxava a direção do Uno pro lado do acostamento. Dava sim pra passar dois carros pela rodovia, os espelhos não iam sequer se tocar.

“Não faz sentido me ensinar, se você já dirige”, ela protestava, e continuou protestando todos os domingos, quando dirigiam até Jacumã e entravam no condomínio onde o irmão de Joel o convenceu a comprar um dos primeiros lotes, com a promessa de que toda a extensão dos terrenos logo não estaria mais deserta, povoada pela bolha imobiliária que agora elegera o Litoral Sul para estourar.

Joel descia do carro, Malena ocupava seu lugar no volante, e ele dizia sempre a mesma frase, brincando com o seu temor pueril:

“Ajeite as orelhas.”

Malena arrumava os espelhos laterais como ele havia ensinado: usando os puxadores da porta do automóvel como referência. Depois tentava achar o ponto morto da marcha sacudindo para os lados e tentando encaixar a primeira como tinha feito tantas vezes, com o carro parado. Calibrava a embreagem e tentava soltá-la aos poucos, pisando no acelerador.

“Morreu”, dizia Joel, despreocupado, procurando Eyes of tiger no pen drive.

 

Aquele clichê de despedida, eu te amo, adeus, não era do Joel, obcecado por lugares comuns.

“Essa é a parte mais difícil do aprendizado, mas se fosse num filme passaria em flashes antes de você aparecer no Detran, já recebendo a carteira de motorista”, ele comentava, o ar-condicionado no máximo e as guitarras distorcidas de Frankie Sullivan pontuando os jabs que dava no painel.

Seria divertido, não fosse Joel tão inepto como instrutor, julgando óbvio demais alertá-la de que as setas para direita e para a esquerda tinham que ser acionadas antes de se fazer uma curva, ou mesmo se recusando a ensinar como fazer uma curva aberta impedindo que o carro de fato não se chocasse com o outro, que vinha na direção oposta.

Quando um motorista desgarrado, por sinal, apareceu na incipiente malha viária do condomínio em construção, Malena travou. Parou o Uno, desligou as chaves e esperou que o outro passasse.

“Numa situação real, se viesse outro carro atrás, nós dois já estaríamos mortos”, disse Joel, colocando pela primeira vez o cinto de segurança.

 

E foi o que Malena fez quando ele pulou: veio atrás.

Talvez Joel julgasse que teria tempo de se esconder por baixo da falésia depois que dissesse aqueles clichês e corresse para se atirar. Talvez imaginasse que ela sequer seria capaz de entender o que estava acontecendo, depois que estacionaram o carro, e ficasse em choque ali, caminhando até a beira do vazio tentando enxergar o seu corpo já estirado nas rochas, lá embaixo, sendo lambido pela maré alta. Mas nada próximo ao que se sucedeu e a Malena correndo resoluta atrás dele, não para tentar impedi-lo de se jogar, mas se jogando também, como se ela própria também já planejasse fazer o mesmo.

Caíram os dois um metro abaixo da ponta, no espaço pouco seguro em que os turistas se abrigavam quando faziam aqueles vídeos meio tétricos simulando a queda. Joel não sabia que Malena não sabia do truque, da ilusão de ótica que permitia que qualquer um que fizesse aquilo escapasse ileso desde que soubesse da existência da falha, logo abaixo. E por pouco não cairiam de verdade, trombando um no outro, quando aterrissaram ao mesmo tempo.

O que veio depois do pouso foi também uma surpresa. Transaram ali, naquele mesmo ponto da falésia, joelhos e cotovelos ralados, o coração disparado pela morte iminente, o carro largado na estrada de barro.

“Idiota”, Malena disse ainda sem fôlego. “Eu achei que você tinha me ensinado a dirigir pra eu ter como voltar sozinha depois que você se jogasse.”

O que obviamente não explicava o porquê de ela ter feito o mesmo, no fundo o que excitou Joel e o motivou a começar a tirar a própria roupa, sem se importar com a nada improvável chegada de alguém ou com a sua cueca que de fato voou sem o dono, sendo levada pelo vento e carregada pela correnteza, no lugar de seu corpo morto. Malena por sorte estava de saia, e passou a usá-la com mais frequência nos dias consecutivos. Voltou para casa finalmente dirigindo e já cruzava os carros na rodovia sem o mesmo medo de que fossem bater.

 

A segunda vez foi por sinal já no carro em movimento, à noite, na única hora que Malena se sentia segura para dirigir na cidade, quando as ruas esvaziavam e o trânsito amainava, e não era tão tarde a ponto de algum psicopata bêbado cruzar a Epitácio no sinal vermelho e partir o carro em dois.

Um risco talvez bem-vindo a Joel, a quem o perigo parecia realmente excitar.

Foi assim, aliás, trocando de lugar no carro parado no semáforo, que tudo começou. Joel puxou o freio de mão e disse que Malena viesse por cima, enquanto ele ia por baixo: arriscado demais descer do carro ali, naquela hora, e a ladeira seria perfeita para treinar a meia embreagem.

Quando Malena se ergueu, a saia já estava praticamente na cintura, e foi impossível conter Joel, que permaneceu em seu posto ao volante e apenas puxou o corpo dela contra o dele, continuando a dirigir quando o sinal abriu, enquanto ela o cavalgava.

Malena estava de costas para o para-brisas e não viu, mas podia ter certeza de que atravessaram alguns vários sinais vermelhos acima da velocidade permitida, os flashes dos radares disparando como as luzes estroboscópicas de uma boate.

Joel como sempre fechou os olhos enquanto só ele gozava, sujando a poltrona do carro.

 

Aquela última aventura assustou Malena, e ela o fez prometer que daquele jeito nunca mais.

Eles tinham como se divertir no carro sem que o contorcionismo dos dois corpos na mesma poltrona os expusesse tanto, aos olhares dos outros motoristas e ao risco de um acidente fatal. Mas nem as mãos nem a boca de Malena davam a Joel o mesmo tipo de satisfação que a ideia de que estavam ambos plenamente envolvidos no ato, e não apenas um, enquanto o outro fingia estar dirigindo.

Porque tentaram o inverso, claro, mas tampouco Malena se animou com os dedos de Joel, explorando suas cavidades enquanto ela tentava desviar dos buracos na pista.

Passaram a brincar com a ideia de que a cama era o local mais estranho onde já haviam transado. Até que o sexo na cama virou mesmo uma experiência inusitada. Começou com Malena sufocando Joel, em parte por raiva das recusas dele em trepar ali, em parte por achar que ele gostaria daquilo e talvez ela também gostasse.

Ele retribuiu a agressão, em parte reagindo, em parte querendo testar até onde poderia ir a sua força e a resistência de Malena.

Malena voltara a gozar e por sorte o trabalho dela, dentro de um escritório climatizado com a típica falta de bom senso tropical em relação à temperatura, permitia que ela usasse um lenço em volta do pescoço a pretexto de adereço. A moda masculina não oferecia muitas possibilidades criativas a Joel, que teve que arriscar uma gola alta absolutamente fora de moda — a piada perfeita durante todos os dias de uma semana em que as marcas demoraram a sarar, renovadas pela tentação do lenço de Malena, cujo nó Joel insistia em apertar assim que ia buscá-la e se refugiavam na traseira do carro, na garagem, como nos velhos tempos.

 

Malena tinha acabado de tirar a carteira quando resolveram tentar nus, na varanda do apartamento.

Malena suspendeu os cotovelos no parapeito e Joel se inclinou perigosamente sobre ela. Alguém gravou um vídeo em que não era possível identificar os corpos, mas dava pra ouvir os gemidos ecoando pelos andares. A síndica ameaçou expor o vídeo em plena reunião de condomínio. Teriam que pagar uma multa que só foi livrada numa noite em que Joel, levando o lixo para fora do apartamento, teve a curiosidade de subir até o último andar e descobriu o quartinho com um colchão puído à beira do fosso do elevador, a grade de metal que era para separá-lo das escadas sem o cadeado, apenas no ferrolho trancando.

Antes de tirar as fotos e ameaçar levar também aquilo à próxima reunião, ao crivo dos pais de família ciosos pela criação de seus filhos num condomínio tão inseguro, aproveitaram para tentar ali também. O barulho do elevador era insuportável, mas pelo menos abafava os gemidos. A proximidade com aqueles cabos e roldanas parecia mais temerária que o parapeito da varanda, mas ainda mais temerário era o estado daquele colchão, ou a ideia de que ele fosse utilizado pelo porteiro numa troca de turno ou por um pedreiro na época da construção do prédio.

O piso e as paredes eram ainda de concreto aparente e, a cada estocada de Joel, Malena sentia as costas raspando no concreto, tão fino era o colchão. Tomando o cuidado de fazê-lo desabar para o lado oposto daquela garganta de metal aberta, Malena tentou dominar Joel e ir por cima dele. Ele raspou as costas primeiro na parede, depois no colchão, mas suportou os arranhões com mais resiliência. Suas costas ainda pinicavam quando desceram as escadas e foram chantagear a síndica. Ela não ousou perguntar como tinham descoberto o quartinho, mas não só o cadeado foi colocado na grade como o colchão manchado apareceu no outro dia na casinha do lixo, esperando ser roubado por algum desabrigado.

 

Chamavam o complexo em que Malena trabalhava de Torres Gêmeas.

Fazia mais de dez anos do atentado e ninguém parecia atentar para a ironia trágica do nome. Malena tinha acabado seu turno e ficara encarregada de fechar o escritório naquela tarde, mas uma amiga resolvera dar plantão e foi o jeito Malena pedir para Joel subir e encontrá-la num dos banheiros. Não era a mesma coisa. Já tinham tentado aquilo na faculdade, então pensaram em subir as escadas até o topo do edifício, mas ali não era nenhum prédio residencial nos Bancários: a porta que dava acesso à cobertura estava trancada, e já estavam enjoados das trepadas furtivas nas escadas de shoppings, desafiando o vão entre os lances.

Queriam algo mais.

Foi Joel quem fez soar o alarme falso, quebrando uma das caixinhas situadas num dos pontos cegos das câmeras do corredor de escadas, sem contar com as dos elevadores que flagrariam a cena. O alarme soou e as poucas pessoas que se encontravam nos escritórios comerciais iniciaram o plano de evacuação. As mãos de Joel suavam entrelaçadas nas de Malena, puxando-a pelas escadas, e o pelo do braço dela se eriçou quando cruzou com a amiga ali, ela descendo, eles subindo, dizendo que voltariam rapidinho para pegar um computador no escritório.

A adrenalina aumentava a cada degrau, cada vez que trombavam em algum retardatário, tentando lembrar do treinamento realizado anos atrás com a brigada de incêndio.

Trancaram-se no escritório e hoje, sim, comemorariam a carteira de motorista de Malena a rigor, só eles no prédio e o barulho dos coturnos dos bombeiros nas escadas, fazendo sua ronda.

Malena espalmou as mãos nas janelas que refletiam o sol em labaredas, mergulhando lento no horizonte do rio Sanhauá. Joel a empurrou com toda a força, esmagando os peitos que deixaram marcas de suor na superfície temperada do vidro. Joel afastou as pernas de Malena, que abriu uma das venezianas, de onde uma corrente de ar trazia o murmúrio distante das abelhinhas abandonando a colmeia, no alto da qual ela reinava absoluta, abelha-rainha, sentindo as investidas do seu zangão.

Na outra torre, luzes se apagavam e cabeças curiosas se aproximavam das janelas ainda acesas.

 

O incêndio começou de verdade entre o andar do escritório e aquele em que o alarme havia sido acionado. Alguém esquecera uma cafeteira elétrica defeituosa ligada, na pressa de evacuar o andar, e o superaquecimento fez o resto do trabalho, favorecido pelo sistema de combate a incêndio que fora desativado manualmente, após o alarme falso.

As chamas rápido se alastraram e a brigada de incêndio só voltou a se mobilizar depois que as superfícies espelhadas pararam de refletir o pôr do sol do Jacaré e deram lugar ao espetáculo do fogo, ameaçando uma solitária figura humana, do sexo feminino, enxergada depois, provavelmente sem roupa devido ao calor, focalizada pelos binóculos do corpo de bombeiros que acabara de chegar.

Nenhuma das duas torres tinha heliponto, e as escadas Magirus só chegavam até o vigésimo andar, sete abaixo daquele em que Malena estava, com o fogo batendo à sua porta. Ela só se deu conta do que estava acontecendo quando viu as luzes intermitentes das viaturas cortando o trânsito da BR, os carros parando no meio da rodovia e a multidão se aglomerando no acostamento, as primeiras trombas d’água surgindo por entre as palmeiras que iam sendo derrubadas para o pouso do helicóptero, enviado direto do Hospital de Traumas.

Saltou sozinha, gritando o nome de Joel, sepultando seu corpo no teto afundado de uma ambulância, estacionada metros dali.

 

Antes mesmo das chamas se extinguirem, as imagens já haviam viralizado na internet, fomentando a curiosidade macabra de quem quer que estivesse interessado num alívio cômico (ou num prelúdio mórbido) daquela morte. Eram fotos vazadas, de pardais eletrônicos instalados em semáforos da cidade, de uma mulher dirigindo nua pela madrugada, ultrapassando vários sinais vermelhos. Vídeos, em que só era possível ouvir o áudio dos gemidos e a indignação dos vizinhos, dessa mesma mulher, se masturbando na varanda de um prédio. Uma sequência captada por câmeras de um elevador diminuiu a confusão na cronologia que precedeu o salto de Malena, mas não esclareceu a razão de seu comportamento estranho, agindo como se estivesse acompanhada de alguém, todas as vezes que cruzou com testemunhas que tentaram se salvar daquele incêndio que a encurralou, trancada no escritório em que trabalhava e de onde ela se lançou, sem roupa, pela janela.

Todos lamentavam a tragédia, meses depois do suicídio de Joel, que se atirou de uma falésia na praia de Jacumã.

Tiago Germano

Foto: Fábio Cardoso

Tiago Germano é autor de O que pesa no Norte (Moinhos, 2022), Catálogo de pequenas espécies (Caos e Letras, 2021), A mulher faminta (Moinhos, 2018) e Demônios domésticos (Le Chien, 2017), indicado ao Jabuti.

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