n.9 | ano 2 | mar e abr 2023
Marcela
Nathallia Protazio
Para as gentes de cá, da cidade, contar uma história que não fale de gente não lhes cabe nenhum sentido. Deste lado do rio, os homens e mulheres se multiplicaram e expandiram até não poderem mais. A impressão que dá é que, muito além de filhos e filhas, eles criaram mais braços e pernas do que a espécie preconizava. Hoje ninguém mais tem a capacidade de andar, correm atrás do futuro e constroem mais rápido o presente. Sei o que estão querendo pensar; contudo, não sejamos insensatos e abramos os olhos para nos manter atentos. Já sabemos que esta história não trata de humanos, então deixemos de lado qualquer tentação murmurada em nossas consciências para críticas a todo momento de quem estaria certo ou errado. Isso não nos convém. Vamos deixar esta tarefa insípida para aqueles mais preparados, ou seja, os que parecem já ter desenvolvido duas línguas e por falta de uso lhes caíram as orelhas. As espécies andam realmente mudadas.
Nossa história se passa do outro lado do rio, onde alguns pássaros ainda cantam saudades dos Tapi-guaçus, a erva ainda dorme no sereno, num tempo onde a flora e a fauna resistem. Lá não se veem mais todas as plantas, flores e árvores de atmosferas passadas. Algumas espécies sofreram mutações quase que insignificantes do ponto de vista externo. Tiveram aumento na quantidade de mitocôndrias, membranas celulares mais espessas, desenvolvimento de novas organelas capazes de um tudo pela sobrevivência: estocagem de água, de oxigênio, de nitrogênio. Espera-se que em breve consigam também metabolizar os monóxidos de carbono e derivados de poliuretanos e poliésteres. Seria uma boa saída, pela quantidade cada vez mais abundante desses compostos na natureza.
Porém, aquela que nos interessa hoje é uma espécie que há muito foi observada, catalogada, admirada, dizem alguns que já foi até venerada nas antigas estâncias. O que posso afirmar com bastante clareza é que devido a todas as mudanças internas e externas que sofreu e a sua capacidade de resistência, a espécie consta desde a primeira edição do Vade Mecum Botânico da América Meridional Subtropical. Macela, Marcela, Marcelinha, Camomila nacional, Vassourinha, Carrapicho-de-agulha, muitos são os nomes populares para designar a Achyrocline satureioides. Por força da nossa localização geográfica ficaremos com o termo usado pelos primeiros povos que aqui habitaram e pela poesia sonora melhorada pelo acréscimo do R: Marcela.
Quem hoje procura gravuras da espécie vai se deparar com florzinhas de um amarelo palhoso, frágeis, normalmente numa mesma haste várias unidas – talvez se sintam menos pequenas quando juntas. As indicações da medicina popular são infusões, beberagens, emplastros e xaropes. Trata-se assim mal de estômago e desconfortos hepáticos, ela expectora os pulmões e pode acalmar nova dentição em bebês. O povo de cá do rio a domesticou.
Atualmente, do lado de cá, ela é um arbusto de no máximo um metro e vinte que passa o ano esperando o fim do verão para dar sentido a sua existência desabrochando pequeninas flores. Estas, com sorte, irão diminuir o choro de algum recém-nascido. Do outro lado do rio Marcela é diferente. Do lado de lá ela é uma árvore. Sim, isto mesmo, eu disse uma árvore. E antes que os céticos da sala se levantem em coro, praguejando e erguendo os dedos aos céus que não acreditam – ‘‘Blasfêmia!’’, repetindo-se com olhos envenenados –, devo dizer que sim, é espantoso mas é verdade. Eu e alguns outros aventureiros vimos com nossos olhos e entendimentos.
Realizamos uma expedição. A equipe era formada por um filósofo, uma geóloga, um cigano, dois rapazes fortes que se diziam cozinheiros, uma botânica, um enfermeiro de formação que também era faixa preta e um cético de nascença formado em ciências da natureza. “Como será isso possível? Uma mesma espécie se apresentar de duas formas tão distintas sob o mesmo sol?” – andávamos nos exclamando durante todo o tempo útil. Então, concordamos que o sol é o mesmo, não importa em qual latitude do Equador o ser se encontre, há somente um sol que ilumina nosso planeta redondo. Mas seria válido notar que um vegetal não se desenvolve somente pelo sol. No mínimo para que se dê a fotossíntese são necessários ainda dióxido de carbono e água. Repito para reforçar o registro para aqueles que estavam desatentos: água.
Nosso rio não é o maior nem o mais importante desta geografia. Há quem diga que não merece nem o status de rio. Assunto de muitas conversas inflamadas durante a expedição. O que nos interessa aqui, e que pouca gente sabe, é que ele divide dois mundos paradoxais: o de cá e o de lá. Em nossa visita colhemos dados e presenciamos fenômenos que em sua maior parte foram computados, analisados e explicados, outros nem tanto. Marcela foi um deles.
Composta por um tronco forte, de espessura mínima de metro e meio de diâmetro, uma folhagem de um verde escuro e mesclado, raízes proeminentes e galhadas que parecem ambicionar os céus: é uma árvore comumente chamada frondosa. Na época de nossa visita não havia real indício de floração, nem nos meses passados próximos, nem no entrante. Porém, ao contrário das expectativas da botânica, que a esta altura encontrava-se em êxtase, Marcela era uma árvore frutífera. Um fruto desconhecido dos paladares que trouxemos, nenhuma memória olfativa ou visual foi passível de correspondência. Grande, bela, aconchegante e nutridora, Marcela foi o maior mistério natural que já vivenciamos.
O filósofo fez inúmeras falações sobre a origem da espécie, das espécies, da natureza, do estudo da natureza, do planeta, do universo, enfim, como todo filósofo falou bastante. A geóloga fez o que fazia de melhor, além do seu trabalho: desenhos. Alguns havia guardado comigo – inclusive o mais belo retrato já feito de Marcela à luz da aurora me foi dedicado como ofertório de despedida –, contudo na travessia do rio toda a tinta parece ter derretido. O cigano colheu algumas folhas, fez uns chás, alguns emplastros, e se atreveu a comer o fruto. Os chás nos proporcionaram viagens astrais inéditas, um dos emplastros salvou a perna do filósofo, que se machucou escalando a árvore atrás de uma visão ampla de seu próprio ser, e o fruto que o cigano comeu, em suas próprias palavras de homem nômade, lhe abriram os olhos. Os dois rapazes fortes cozinharam o fruto antes de comer, muito perigoso se arriscar sem tempero na vida. Comeram, aprovaram e liberaram três pratos diferentes para degustação. Marcela foi provada e repetida por todos em suas três formas gastronômicas. Ninguém reclamou.
O enfermeiro foi o que menos falou e ainda menos fez. Fechou-se numa contemplação perdida. Mal percebemos quando, na nostalgia do regresso desta aventura, ao final das últimas saudações, percebemos sua ausência. Alguns do grupo se arriscaram a imaginar uma tragédia: “Afogou-se!”, aludiam com incerteza que ele havia entrado no rio pela volta mas que de lá não saíra. Grandes discussões e lamentos, tenho pra mim que a última vez que o vi foi abraçado à tal árvore mágica, e minha intuição não me mente quando estimo que, apaixonado, se resolveu por lá ficar. Marcela pode ser perigosamente atraente. A botânica colheu muitas amostras biológicas, soube que já está toda em vapores e óleos essenciais no seu laboratório acadêmico, enchendo cadernos de anotações e receitas. Mas como toda boa alma da ciência, nunca estará satisfeita com as análises preliminares, já estamos marcando uma nova visita às terras férteis do outro lado do rio.
Enfim, para terminarmos este registro inicial, como cético que sou, para mim restou a sórdida missão de em nada acreditar, ainda bem, pois este era o trabalho. Não acreditei em nada do que vi, comi, toquei, cheirei, escutei, lambi, apalpei, ouvi e sonhei. Não acreditando, resolvi anotar tudo sem prolongada espera e confio tal episódio de tamanha imaginação ao vosso recíproco ceticismo na esperança de encontrar descrença. Afinal, hoje em dia, as gentes não estão mais interessadas em histórias que não falem de gente.
Nathallia Protazio
Foto: Diego Lopes
Nathallia Protazio é pernambucana, escritora e farmacêutica. Hoje se diverte entre crônicas, mestrado em psicologia social, coordenação do Coletivo de Escritores Negros (CEN), edição da Venas Abiertas Porto Alegre e da Revista Parêntese e também nos bares da Cidade Baixa, onde vive e se apaixona. Títulos publicados: Aqui dentro (Venas Abiertas, Belo Horizonte, 2020) e Pela hora da morte (Jandaíra, São Paulo, 2022).