n.9 | ano 2 | mar e abr 2023
Horário de almoço
Thaiane Paschoal
Aproveito o horário de almoço dessa sexta-feira ensolarada no meio do outono molhado de Porto Alegre para comer num bistrozinho descolado na avenida que fica perto do meu trabalho. O preço dele é meio salgado para almoçar todos os dias, mas de vez em quando saio escondida do escritório para não ter que ir ao buffet com o pessoal. Sempre o mesmo arroz ressecado, quarta-feira feijoada, você vai temperar a salada e colocaram óleo na garrafa de azeite de oliva, às vezes esse almoço proletário não me passa pela garganta.
Vou caminhando na calçada onde bate mais sol, aumento o volume da música porque não quero ouvir o barulho da rua, chego na porta do restaurante e cumprimento a hostess, ela já me reconhece e me coloca perto da janela. Na mesa vizinha, estão sentadas duas meninas que parecem ser bem mais jovens do que eu. Sento ao lado de uma delas e em diagonal para a outra. Elas têm a aparência de recém-saídas da adolescência. As duas estão bem-vestidas e a que eu consigo ver melhor veste uma saia xadrez e meia-calça preta grossa, a bolsa de uma marca que eu sempre vejo as estagiárias da empresa usando. Algum designer brasileiro que está na moda e eu não conheço.
A atendente retira meu pedido: um fettuccine caseiro ao molho cremoso de limão. Ela serve a entrada especial com salada, dois tipos de pães, sardella e patê de queijo. Eu peço uma taça de vinho tinto e fico torcendo para que ninguém do meu setor passe perto da janela.
Enquanto belisco os pães, deixo meu celular dentro da bolsa e ligo as minhas antenas para prestar atenção na conversa delas. Ambas comem com elegância, imagino que são de famílias de posses, sabem se portar, usar os talheres, têm pose de quem tem etiqueta à mesa e aprendeu isso em casa.
Quando entendo o teor da conversa, não consigo disfarçar minha surpresa. Devo fazer uma cara meio ridícula franzindo o cenho, mexendo as sobrancelhas, qualquer coisa que me deixe parecida com uma senhora conservadora. Intencionalmente, relaxo o rosto e continuo escutando fingindo naturalidade.
A menina sentada na minha diagonal tem o cabelo preto e curto, um corte moderno que deixa todo seu lindo rosto em destaque, usa um piercing no septo e pouca maquiagem, é pequena tipo mignon, fala com tranquilidade sobre todos os telefonemas que precisou fazer para as boates da cidade sem ter seu problema resolvido porque “ninguém reconhece devidamente a trabalhadora sexual em Porto Alegre”:
— Eu já liguei na Tia Carmem e na Dominó. Até procurei a Associação das Trabalhadoras Sexuais e nada.
Engulo um pedaço de pão com patê sentindo gosto da minha própria ignorância, não compreendo a indignação da moça. A conversa evolui e agora a amiga conta de sua decepção com a noite anterior porque achava que o programa seria um tipo de encontro e que beijaria na boca e não tinha sido nada daquilo, com um aspecto juvenil complementa: “eu sou trouxa demais porque me apaixono”. Ela parecia ter um pouco menos de idade do que a outra e tinha cabelos longos e cacheados e os braços e pernas finas.
A amiga responde:
— Não tem que se apaixonar por ninguém. Tu ainda não aprendeu? — ela diz isso com a voz mansa, não parece arrogante e nem complacente. Só fala enquanto dá uma garfada em seu suflê.
A conversa segue e minha massa é servida. Eu mastigo lentamente e peço a segunda taça de vinho. Não pretendo ficar bêbada, mas tudo bem se ficar um pouco. Não quero que essa conversa acabe, não quero que elas parem de conversar. Quero desfrutar dessas experiências, de suas vidas clandestinas, dessa rebeldia burguesa.
Elas seguem falando sobre um fichamento que precisam entregar na aula de terça-feira, xingam um professor que fez algo super escroto, o próximo assunto é um sexo um pouco bruto que deixou marcas roxas no peito de uma delas, na sequência o assunto é o primo bebê da menina de cachos e o quanto ela adorava brincar com ele.
Me lembro do nascimento da minha sobrinha quando eu ainda era adolescente e como eu passava horas fazendo dela minha boneca. Era baixava a máscara de quase adulta e virava criança por algumas horas.
Vender sexo nem sempre precisa ser uma opção triste. Pode ser uma escolha consciente de mulheres que fazem uso de seus corpos para tirar um pouco de proveito dos poderosos de cabeça branca. Seria uma troca justa: elas entram com o corpo, eles com a grana.
Eles já tiram tantas coisas da gente, esses velhos, alguém precisava tirar alguma coisa deles. Ainda bem que existem as putas.
Quando elas revelam os ganhos que tiraram na última semana de suas contas do onlyfans, eu fico pasma. Certamente não precisam espremer os gastos para almoçar naquele restaurante uma vez por semana.
Quando eu tinha a idade delas era deslumbrada, metia os pés pelas mãos e entrava no cheque especial para comprar blusinhas de marca. Fiz estágio desde o início da faculdade, carregava pastas de documentos para cima e para baixo, chegava sempre mais cedo. Era focada no meu futuro, não almejava nada além de um bom cargo e me casar com um cara legal.
Olho para a minha mão esquerda e sinto o aro metálico da minha aliança. No final das contas me casei com uma pessoa interessante. Intercalei minha juventude entre longos relacionamentos e curtos períodos solteira, sempre fui mais apaixonada por estabilidade do que por qualquer outra coisa. Seguia o caminho mais seguro sem questionar, ainda que isso implicasse em diversos sacrifícios pessoais.
Beberico minha água embarcando mais na conversa, cada curva me leva para uma memória do meu passado, especialmente, quando estudava, era quebrada e bebia vinho barato e vodca em garrafas plásticas. Namorei uns carinhas toscos, tive transas ruins inclusive em um dos meus relacionamentos. Três anos de namoro e nenhum orgasmo.
Depois de me formar e de noivar, fui contratada para a vaga dos meus sonhos após ser aprovada em um extenuante processo seletivo. Ingressei num grupo de trainees muito competitivos e passava a maior parte do tempo em estado de alerta para qualquer sinal de fracasso. Se me distraísse seria engolida pelo tubarão ao lado, era obrigada a usar salto alto porque era determinação no código de conduta da empresa, mesmo precisando caminhar incontáveis vezes os longos corredores entre os setores da firma, destruindo todos os pares, os meus pés e as pernas.
Eu os apelidei de sapatos de guerra, comprava as opções mais baratas em uma loja do centro.
A escolha pela carreira executiva encheu meus pés de calos e me cobrou umas tantas fatias de dignidade.
Elas conversam sobre uma colega que faz crossfit cinco vezes por semana e ambas dizem que não praticam nenhum esporte, mas seria bom para ajudar a aguentar o tranco.
As noites que eu passei em claro sentada na mesa de jantar do meu primeiro apartamento estudando projetos, criando apresentações, aperfeiçoando traduções. O despertador que sempre tocava 05:20 para que eu conseguisse me antecipar e aquecer a sala antes dos chefes chegarem para as reuniões das sete da manhã, deixando o espaço mais aconchegante apesar do excesso de superfícies lisas em mármore. Nunca tive tempo de ir à academia cinco vezes por semana e jamais sequer me perguntei se gostaria disso.
E se de repente eu abrisse agora uma conta no onlyfans, será que teria um faturamento parecido com o delas?
Acho que é tarde demais, a minha barriga tem quatro dobras e eu não tenho empenho suficiente para fazer tanta depilação, as minhas partes baixas já não devem estar lá essas coisas. As pessoas pagam para ver uma perereca que pariu dois bebês? Um deles nasceu com mais de quatro quilos.
Tenho a sensação de que o negócio dos homens são as meninas nessa pós-adolescência, corpo com shape infantil, mas legalmente maiores de idade, assim pagam para transar sem ir para a cadeia.
Uma delas usa bota Gucci sem parecer pretensiosa. Olho para os meus sapatos, que não são mais de guerra, mas também não são Gucci, e sinto o peso dos últimos vinte anos em que passei vendendo meu cérebro, minhas ideias, meu tempo, minha inteligência. Isso me gera uma angústia lembrando da recusa do meu último pedido de promoção. Eu estava há mais de três anos sem ser promovida, sem aumento salarial e eu sabia que não tinha chegado no meu limite, mas tinha batido no teto invisível e o pedido foi negado pelo Vice-Presidente da empresa. Aquele maldito com seus cabelos brancos.
Eu já estou quase estourando o horário, se demorar mais um pouco vou perder meu primeiro compromisso da tarde, imediatamente levanto a mão e chamo a atendente:
— Por favor, pode me trazer mais uma taça?
Thaiane Paschoal
Foto: arquivo pessoal
Thaiane Paschoal é escritora, advogada e podcaster. Nascida em São Paulo, viveu em Curitiba por mais de 20 anos, atualmente reside em Porto Alegre. Dedica-se aos estudos em literatura e psicanálise.