n.9 | ano 2 | mar e abr 2023
Fred Linardi
Entrevista
Para todos os casos, não cair na ingenuidade de que você está contando a verdade, pois ela é impossível de atingir. Tampouco a de que você está captando e retratando a realidade, o que também é muito ingênuo de se dizer, e um tanto quanto perigoso.
Como fica o exercício da criatividade no trabalho de não ficção? Se tu não pode inventar fatos, qual o espaço para a criação?
Vejo isso como um dos maiores desafios dessa prosa que caminha entre os fatos da vida, a memória das pessoas e a estética literária. A escrita que pretende não inventar os fatos surge depois de um processo em que busco o máximo de informações possíveis para compor a prosa literária. Pesquiso sobre o determinado acontecimento ou personagem real, entrevisto pessoas que conviveram com eles ou testemunharam situações. Tento seguir a imersão, indo aos lugares citados nos registros e memórias, acompanhando eventos relacionados que ainda possam estar acontecendo… É o que chamamos da fase de imersão na história — a imersão prática, antes da escrita. Caso o personagem estiver vivo, claro que tentarei ter o contato direto com ele, imergindo em seu contexto e seus espaços, caso seja possível.
Essa disciplina de colher as informações e a intenção de nos ater a elas limitam o ato da invenção, mas não o da criação. Pois aí temos a liberdade para pensar um roteiro e construir as cenas, por exemplo, como uma escrita de um romance. Eu costumo repetir nas minhas oficinas o fato de que a narrativa de não ficção é um ato tão livre e criativo — e, portanto, muito subjetivo — que, se todos fôssemos escrever um texto sobre determinado acontecimento ou pessoa, não sairia um texto igual entre nós, mesmo que todos tenham exatamente as mesmas informações e produzam uma narrativa fiel a elas.
Pode falar um pouco pra gente de como é o teu processo de escrita, em termos de organização das etapas de pesquisa e produção?
O começo do meu processo é difícil de precisar. Acho que eu encontro o tema dessa minha escrita depois de já tê-lo vivenciado um tanto. É como se esse processo de imersão que eu mencionei já acontecesse antes de eu perceber que aquilo será o meu próximo assunto. Foi assim que aconteceu no livro Onze estreias. Eu fui fazer uma oficina de palhaçaria e, meses depois, eu senti que a história da professora, Gabriella Argento, renderia um livro envolvendo a história dela e as coisas que estávamos aprendendo ali. Eu estava passando pela experiência na pele, eu a observava como aluno, como público ao assisti-la em cartaz, eu ouvia atento às histórias que ela trazia em aula. Eu fazia relatórios das aulas. Então, decidido escrever sobre ela, eu já tinha um material para começar as entrevistas em si.
Algo muito importante neste processo é saber conversar com as pessoas, com os entrevistados. Fazer boas perguntas. E fazer de modo natural, levando o encontro como uma conversa mesmo. Podemos passar semanas, meses, anos, coletando esse material. Enquanto isso, vou pensando em possíveis roteiros para a história. Como vai ser o enredo? Qual vai ser a cena de abertura…? Na maioria das vezes, depois de uma boa parte da pesquisa diante de nós, já é possível esboçar algumas partes da história. As informações que vão chegando com a sequência de entrevistas e pesquisas acabam por trazer novas peças para uma estrutura de texto cada vez mais consolidada.
É interessante e justo mencionar que, em algumas vezes, os relatos já vêm tão bem contados, que o próprio momento de passar para o papel já sai muito próximo da narrativa editada. Tem gente que é contador de história nato, não é? Quando entrevistamos essas pessoas, é uma grande alegria (risos), parece que já vem a escrita pronta.
Pra quem tem interesse em começar nessa área, que dicas tu tem para dar?
Acredito que sejam parecidas com as de quem quer escrever literatura em geral. A curiosidade e o interesse são vitais para o começo de tudo. O interesse, em especial, nas pessoas, já que não existe literatura sem personagem. E não conseguimos escrever esse gênero da não ficção sem o mínimo contato com outras pessoas. Com isso, a maior dica que dou é que tenha uma escuta atenta ao outro, interessada de verdade no que o outro tem a dizer.
Outro ponto, que também não é novidade, é que se leia obras do gênero. Perfis biográficos, livros-reportagem, biografias, memórias, ensaios pessoais, narrativas de viagem, diários… Temos ótimos representantes dessas modalidades no Brasil, além de traduções de obras excelentes. Para quem está muito habituado à leitura de novelas ou contos, por exemplo, e planeja escrever algo da não ficção, é interessante fazer uma incursão por esses livros para captar algumas de suas particularidades, além de oficinas, que nos trazem a chance de compartilhar questões em comum naquele determinado grupo.
No caso de um texto autobiográfico, é preciso coragem para expor situações que nos dizem respeito e que talvez se mostrem difíceis de serem expressas em palavras escritas e do modo que a literatura exige, com detalhes a profundidade, por exemplo.
Para todos os casos, não cair na ingenuidade de que você está contando a verdade, pois ela é impossível de atingir. Tampouco a de que você está captando e retratando a realidade, o que também é muito ingênuo de se dizer, e um tanto quanto perigoso.
Tu também escreves contos ficcionais. Como a não ficção e a ficção dialogam na tua obra? O que te preocupa quando tu escreve um conto?
Comparando uma escrita com a outra, as dificuldades estão nos lados opostos dessa mesma moeda que é a literatura. Na não ficção, eu tenho que ir atrás de uma história que existiu e descobrir seus detalhes para contar. Na ficção, essa busca é interna. Eu tenho que inventar e isso depende da minha imaginação e nada mais além disso. Na não ficção, pode ser frustrante se deparar com lacunas, que nos fazem querer preencher com invenções. Já na prosa de total ficção, seja conto, novela, romance, a preocupação é de não conseguir encontrar um desfecho que na não ficção já está dado. São as delícias e as dores da liberdade inventiva.
No teu livro Onze estreias, tu te colocou como personagem, narrando trechos em primeira pessoa. Sabemos de fonte segura 🥸 que tu está escrevendo um livro de memórias próprias. O processo de escrita de si é diferente dos outros processos de escrita? Que desafios tu enfrentou na escrita do “Onze estreias” e que estão — ou não — se repetindo agora?
Uhm, será que suas fontes estão dizendo a verdade ou mentindo? (hahah! Só para jogar em vocês um fantasminha que ronda escritores de não ficção…).
Pois sim, estou escrevendo um ensaio pessoal e vivendo o inverso do livro Onze estreias. Neste, eu utilizei o narrador em primeira pessoa em algumas partes como uma escada para falar sobre a biografada. Então é um “eu” utilizado mais como testemunha de uma história que não é a de si mesmo.
Já neste projeto atual, estou mirando o holofote para mim. Como disse na terceira pergunta, agora a escrita é também um ato de coragem. Você é o próprio personagem, então esse diálogo de uma entrevista é feito comigo mesmo. Eu me direciono as perguntas, inclusive as mais difíceis. Não conseguir responder algumas cujas repostas só dependem de mim é mais frustrante do que quando não consigo extrair a resposta de um outro entrevistado.
Outra particularidade nessa escrita de si é ter o cuidado de não pintar a figura do bom rapaz, ou de vítima, ou da pessoa cem por cento honesta e verdadeira. Ao mesmo tempo, não pintar os outros simplesmente como culpados e algozes dos nossos dramas e frustrações. Todos somos feitos de contradições, de atos antiéticos, injustos e constrangedores. A literatura se constrói a partir dessa nossa condição instável como seres humanos. Explorar isso sobre si mesmo é extremamente delicado e doloroso em vários momentos. Mas também libertador.
Além disso, em termos textuais, é preciso atenção para não se perder em tantas memórias e sair do foco temático em questão, pois uma lembrança pode ir levando a outras e outras… e aí agente pode perder o propósito do enredo e, consequentemente, perder leitores e leitoras.
Fred Linardi
Foto: Neto Gonçalves
Fred Linardi é escritor e jornalista. Mestre e doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, com especialização em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário. Na não ficção, é autor de livros de memórias familiares pela Editora Biografias & Profecias, e conquistou o Prêmio Manaus de Literatura pela obra Onze Estreias (Editora O Grifo). Na ficção, participa de diversas antologias de contos, que já foram premiados pelo Concurso de Contos Josué Guimarães e pelo Prêmio Paulo Leminski. É também palhaço.