
n.10 | ano 2 | ago 2023
Post scriptum
Marie Corbetta
Bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip, bip… bip… bip… bip, bip… bip… bip… bip…
bip… bip… bip… tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…
O som me despertou. Quando abri os olhos, a máquina foi o que vi. Com a linha reta seguindo em alta velocidade na tela.
Então é isso? The final moment, como cantava Sinatra. Não vou dizer que estava preparado. Não ainda. A médica tinha me dito que teria que fazer algumas mudanças, tirar o scotch, moderar a carne, dormir melhor, praticar alguns exercícios, viver de acordo com a idade e todas as fórmulas, longevidade saudável. Sempre essa ladainha.
— O senhor parece muito bem para a sua idade — disse a jovem com estetoscópio no pescoço, roupa branca e um corpo bem-feito, consultando minha ficha —, mas seu coração não concorda. Ele está pagando um preço alto pelo seu estilo de vida — concluiu, desviando o olhar do meu, que percorria seu corpo.
E o que dizer agora dessa guriazinha, toda vestida de importância, pendurada num estetoscópio, olhando desolada para os exames recém-chegados, inúteis? Podia ser minha filha, ou até neta.
Impressionante a rapidez com que tudo aconteceu. Você tem um súbito escurecimento da visão no meio da rua e quando torna a ver luz, ela é cegante, e você se vê estendido numa maca. Tudo é asséptico. Tudo é rápido. Tubos envolvem e penetram seu corpo. Nada sinto.
Vejo tudo acontecendo. Sou um expectador.
Minha filha médica, em seu apartamento, insisto num whisky. Dá de ombros. Falamos sobre livros, não sei como chegamos na biblioteca que tive um dia.
— Que você deu para a universidade?
— Dei, não. Perdi.
— No jogo.
— Pois é, eu vivi.
Vivi mesmo. Fiz questão.
A vida em que comecei era dura. Carecia de tudo, principalmente de prazer e afeto. A mãe sempre a trabalhar sozinha, na roça e na casa, dia e noite, para cuidar da gente e dos bichos. Ela dava conta de tudo. Nada acostumada a delicadezas. Aridez era a matéria-prima de seu solo que, quando não era rachado, fazia-se pantanoso. Não conheceu o afago. Sua face, como o chão, sulcada cedo. Levou a vida apanhando. Batia de volta.
Com o pai, nunca foi diferente. Homem macho de facão. Dormia em cela de cavalo, coberto com pelego de carneiro. Ao relento. Vivia com o pé no estribo. Se perdia no mundo, pra lá dos pampas. Atravessava o Brasil levando sua família escolhida: o gado. Quando estava em casa era rei. Mas com seus filhos não tinha conversas. Carinho era o relho, no lombo da gente.
Seu João Ruivo. Virou lenda. Muito mais tarde, velho aquebrantado, virou avô dos filhos dos vizinhos. Seus netos ficaram espalhados pelo mundo. Eu me encarreguei da maior parte disso.
Saí aos treze anos de lá. A professora do primeiro ginasial que disse que minha cabeça era muito grande para me perder naquelas pequenezas. Acreditei e me lancei. Já era homem. Fui ao encontro das mulheres, tantas, da minha vida. Sempre eram meu recanto, meu aconchego. Não sei se afeiçoavam-se pelo fato de eu ser miúdo, parecendo indefeso, despertando a mãe dentro delas; ou se a mágica era operada pela minha fala. Porque isso aprendi pronto. Minha contação de vida encantava as mulheres.
Aos dezessete, já era radialista de importância. Saí do estado. Subi no mapa e na vida. Me fiz jornalista, publicitário, editor. De Tupanciretã pra Rosário do Sul, pra Porto Alegre, Itajaí, Florianópolis, Curitiba, Pato Branco, Cascavel. Me fiz conhecido do extremo sul do Rio Grande até o extremo norte do Paraná. Criei revistas e programas de rádio, fundei agências. Fiz o sertanejo gaúcho encantar as rádios de todo o sul. Fiz concurso de Miss crescer também. Uma delas quase me perdeu. Sofri para me encontrar depois. Era muita areia pra mim.
Dei o pontapé inicial em muitas carreiras. Mas eu sabia ouvir. E observar. Aprendi rapidamente a navegar o universo. O mundo não é difícil, e está aí sempre, todo arreganhado, grandão, imenso, para quem quiser aprendê-lo. Um cristão tem que ser bobo para não aproveitar.
Me dei inteiro sempre, a cada momento. Mas na base da troca. Toma lá, dá cá. Se minhas cartas forem melhores, o jogo é meu. Eu dito as regras. Não me selam. Salto. Arrisco. Pode custar, eu pago. Ou blefo.
É melhor ser o pior entre os melhores? Ou o melhor entre os piores? Blefo, mas banco, vou pras pontas. Ou saio de fino. Não se pode ganhar todas, mas tem que saber perder. Ganhei meu jogo, sempre na esperteza e com garantida honestidade. Quando foi preciso, na bala. Não era o maior nem o mais forte, era atento. Mais rápido. Sabia atirar, me defender. Nunca corri da raia, nem de briga. Tampouco juntei cacos ou recolhi migalhas. Minha fidelidade e confiança é comigo. Fui quem sou até o fim, e não houve porteira ou potranca que me segurasse. Não havia de ser assim. Se estava escrito não sei, mas eu escrevi. E li. Fiz história na vida de muita gente.
Matei um homem, uma vez só. Na honradez das regras. Mesa grande, jogo arranjado. O padre, amigo de amigo, garantia cerimonia e correção. O convidado era coronel de posse, vindo de fora. Mas sem honra. Eu vi a carta passar pra manga. Cantei o ato. Ele negou e subiu o jogo, sem base nem razão. Ia levar tudo. Quando a arma ia surgir, virei a mesa e atirei, na certa. Pois foi o padre que me aconselhou e ajudou a fugir. O padre agradeceu. Ganhou a mesa, perdoou o pecado, que nem meu não era. Essa pena pode vir a ser cobrada. Mas não ponho crença.
Pra mim mesmo não devo nada. Paguei em espécie e corações partidos. Meu amor espalhei por muitos cantos. Com viola caipira, milongueira. Tango, sempre dancei. E bem. Se preciso, sapateio. Mesmo depois de ter ido, até pouco tempo atrás, apareceram filhos meus por aí. Alguns mais novos que meus netos. Como eu disse, comecei cedo. Não parei, fui parado. A vida é fogo fátuo. Ditou a hora, eu compareci. Nem por gosto, que não dissimulo. Joguei limpo, mas fui vivo. Olhava e via. Homens são muito explícitos. Alguém já escreveu: o que você mais vê de um homem é o que ele tenta esconder. Por isso eu não escondia, dizia na cara. E se fosse me desdizer, antes de perder, eu saía. Só mesmo por distração me atrapalhava.
Tive lá os meus revezes. A vida nunca é fava contada, mas tem cartas marcadas. Não pra mim. Construí muita coisa. Comecei muitos castelos. Só não tinha tempo nem vontade de morar em nenhum. Sempre preferi minha parte em alforria. Preço líquido e volátil. Pacto, nem com o diabo.
E sempre encontrei colo. Aquele que a mãe não deu. Em troca, deixava herança. Minha árvore genealógica nunca teve raiz fixa, mas ramos alastrados, copa frondosa, até onde a vista alcança. Vou ser lembrado. Podem não vir no meu enterro, mas minha falta engendrou muito herói. Vai ser sentida.

Marie Corbetta
Marie Corbetta nasceu em Itajaí–SC e sempre quis viajar. Começou viajando nos livros e nas estórias. Apaixonou-se pela medicina e foi médica a vida quase inteira. Agora voltou a viajar. Largou a medicina e graduou-se em letras para ler melhor. Trocou o bisturi pela caneta e o papel e se aventura na escrita. Tem contos e textos publicados em coletâneas e está escrevendo um livro. Participa da Oficina Permanente da Baubo desde o começo. Hoje mora na Alemanha e está aprendendo alemão. Mas filosofa mais em outras línguas.