n.10 | ano 2 | ago 2023

como é mesmo?

Dani Langer

, sente, é a mesma coisa que tomar água gelada com halls na boca, você diz sugando o ar a toda, inspirando metade do mundo, querendo tragar aquele risco de nuvem que se equilibra no céu. Chupo o vento gelado entre os dentes só para fechar a boca numa careta e ouvir sua risada. A polpa dos seus lábios molha minha orelha, algo sobre dessentir as pontas dos dedos. Tão frio lá fora, olho para a cidade que aos poucos começa a se espreguiçar. Mas aqui, na sacada, não é lá fora também?, você pergunta, invento uma resposta, você emenda outra pergunta, eu uma outra resposta e assim uma sucessão de perguntas e respostas curtas que lhe farão repetir o sorriso e buscar meus olhos, cada vez mais perto, até que pareçamos como um, como é mesmo? Assim, com os olhos se sobrepondo. Você se apoia ao parapeito, as costas à cidade. Sua testa encosta na minha, seus olhos cobrem a estamparia azul da manhã e meu dedo desenha as linhas da sua boca — indicador quase prensado entre nossos lábios —, mornas, as línguas se escondem atrás da unha, falanges. Suas mãos buscam os bolsos do meu casaco. Nossos corpos cada vez mais juntos, primeiro as lãs grossas, agasalhos se misturam, abrem-se e cedem ao nosso abraço; depois o estremecimento e o susto, sempre o mesmo susto de sentir seus seios exatos, na mesma altura dos meus. O assombro e arrepios de desejo me percorrem e queimam as pontas dos meus dedos ao encontrar o assombro e arrepios de desejo que lhe percorrem, sinto o formigamento e escorrego o dedo pelo caminho do queixo até o pescoço. Escondo minha mão entre os seus cabelos e a gola de lã; você reclama manhosa, as pontas geladas dos meus dedos são icebergs flutuando por sua pele, eu rio e você ri, mole, lânguida no meu riso que é o seu riso — mais próximas —, somos… Como se chama? O olho uno no meio da testa. O céu já se foi e nossos olhos cada vez mais sobrepostos — os seus olhos são um poço de grama onde debilmente eu penso em mergulhar —, com nossos narizes colados fecho os olhos para que feche também os seus e mais uma vez puxo o ar gelado que preenche o oco da boca — as bocas encaixam-se como que surpresas pela facilidade de poderem encaixar, como se fosse a primeira vez que estivessem assim dispostas e lutam, mordendo-se com os lábios. O prazer é dor, escrevem os dentes que riscam linhas finas na polpa das carnes enquanto as línguas travam luta, ora em um território, ora em outro, buscando cavernas para depois brincar em suas ranhuras, onde o ar que por elas circula se mistura com o perfume e o silêncio; e, porque, enfim, deixamo-nos abandonar pela precisão absoluta das pequenas coisas, acarinho sua cintura e minha mão é uma fruta madura que simplesmente deseja despencar oblíqua até o consolo do solo — a textura da sua calcinha — e, finalmente, se acomodará entre as folhas aquecidas pelos raios de sol — folhas tão mornas quanto a pele que arrepia ao sentir minhas unhas em torno do umbigo, riscando uma via láctea sob o ventre. Quase me machucam suas mãos dentro dos meus bolsos, como se fosse possível juntarmo-nos mais, um ser unívoco — então, a expansão do universo. Duas ou três estrelinhas explodem perto do fecho da sua calça, os botões cedem como planetas menores, fragmentários, indicador, anular, cometas. E você sorri. Leio com a ponta da língua o seu sorriso, que recebo como uma prece para junto dos meus lábios, tão próximas — entreabertas, nossas bocas tragam o ar frio;

 

, sente, você repete, é a mesma coisa que tomar água gelada com um halls na boca, e mais uma vez tenta sorrir — mas seus lábios invertem caminho e se projetam à frente, a polpa macia ganha volume colando em meus dentes de brasas, chupo sua língua espessa e acolho em meus lábios o seu gemido. Meus dedos lhe penetram. Um universo inteiro sendo restabelecido onde seu corpo gravita teso contra o meu e meus dedos deslizam aquosos para dentro e fora de você. Como cega, vejo a manhã apenas no meu interior, adivinho o sol crescer entre os edifícios pela luz que nos acarinha, seus lábios deslizam pelos cantos dos meus e o beijo se desfaz, deixando sua saliva molhar meu rosto, você murmura alguma coisa que não entendo, agora sou surda e escuto apenas os sons dentro de mim — apalpo sua carne e ouço pela ponta dos dedos que você pulsa, você pulsa e tira as mãos dos meus bolsos, você pulsa enquanto escorre inteira e segura em meus ombros — deixo que suas unhas plantem em mim como se fossem sementes. Semeia um jardim em meu pescoço e o alimenta com a umidade dos lábios em minha orelha, derretida em meus dedos que lhe exploram. Eu, de olhos fechados, descubro a cidade através da cortina dos seus cabelos, boca entreaberta engolindo o ar gélido — é como uma faca cingindo os pulmões, mas mesmo assim sugo com força para depois devolvê-lo na ponta da minha língua, fria como aço, desenhando o infinito em sua pele. Você apoia as mãos, e depois apoia o antebraço em meus ombros; é um martírio o esforço para erguer o corpo que de repente parece leve, quase flutua contra o céu que nos achata com sua massa absurda e azul, a pressão de toda a atmosfera lhe jogando de encontro a minha mão que cada vez mais rápida orbita dentro de você em movimentos curtos. Pressiono meu ventre contra o seu, meus seios esmagados contra os seus seios, nossas bocas como carne viva, expostas, a saliva transluzida, quente, a saliva trocada como sangue, necessária, os rostos tão perto, os olhos sobrepostos. Somos como um. Como somos, mesmo? Eu tento buscar em algum lugar o nome, a angústia de não parar nunca de pensar, você treme, contraída, eu tremo, a dor das suas unhas que afundam mais em meu pescoço, contraída, como aquele, a retina única que some, cede, a pupila dilatada, pontual no meio da testa, você se contrai — absoluta nos movimentos involuntários, expulsando e recolhendo meus dedos para dentro de você —, com os lábios entreabertos deixa de respirar por alguns instantes, o olho estático, a morte provisória, e com um soluço pende seu rosto para frente, as narinas inchadas, o semblante lívido entre pavor e desejo, o ar quente que recolho como um presente, beijando-lhe de leve, um mimo que agradeço deixando que meus dedos escorreguem, emergindo de um longo mergulho, o sumo pespegando entre as nossas peles, seus pelos, entre meus dedos ainda protegidos pelo calor do seu corpo. Você me olha, cada vez mais dentro de mim você me olha, nossos olhos tornando-se cada vez maiores no desfalecimento dos nossos corpos, amortecidos, as peles querendo se tornar apenas uma pele, minha testa encostada na sua testa, seu único olho que olha para meu único olho que reconhece em você uma imagem no espelho, uma só imagem, invertida, como se fossemos um, como é mesmo?

 

Dani Langer

Dani Langer nasceu em 1978, na cidade de Porto Alegre e se dedica à literatura. É mestre em Escrita Criativa pela PUCRS e tem contos e resenhas publicados no Brasil e na Alemanha. Coorganizou Por que ler os contemporâneos? Autores que escrevem o século 21 (finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2015, na categoria Ensaio de Literatura e Humanidade) e é autora do livro de contos No inferno é sempre assim e outras histórias longe do céu.

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