n.4 | ano 1 | mai 2022

davi boaventura

Entrevista

 Acho que, desde que se busque uma consistência séria no trabalho, e desde que se estabeleça um diálogo, a gente tem mesmo é que enfiar o pé na porta e escrever do jeito que quiser o que a gente quiser.

Como é a tua rotina de criação? Tu tem uma rotina mais rígida, ou vai criando conforme as possibilidades dos dias? Tu aproveita cada minutinho para escrever, ou passa dias sem formar uma frase? Enfim, como é a tua relação com a tua produção criativa?

Acho que minha relação com a produção criativa enfrenta o mesmo dilema da grande maioria das pessoas que escrevem, que é tentar equilibrar o trabalho pessoal com o trabalho que efetivamente paga suas contas. Como trabalho com tradução de textos literários, e como nas horas vagas escrevo minhas coisas, dá para dizer que passo o tempo inteiro escrevendo. Em geral, acordo, como um beiju, tomo uma limonada, sento para trabalhar. Almoço, durmo, sento para trabalhar. Bem burocrático e nada glamouroso. Às vezes, quando o prazo está mais folgado, consigo encaixar uma escrita mais pessoal. Às vezes não dá. Mas uma coisa que tem acontecido com frequência, e que sempre acontece quando estou escrevendo um livro novo, é ficar ruminando algumas frases até conseguir colocá-las no papel, mesmo que esteja fazendo outro trabalho em paralelo, e aí passo mais uns dias ruminando outras cinco dez linhas, e depois mais cinco, e por aí vai até que vou enchendo algumas páginas. Tem sido dias de insônia.

 

Em Mônica vai jantar, há uma preocupação estilística (A ausência de pontuação, pequenos estranhamentos de palavras como a expressão marido-namorado etc). Alguns contos teus também dialogam com fotografias (Um-dois-três, 2017), com texto em duas colunas com ações paralelas (Piscina olímpica, 2016). A preocupação com a forma vem junto com a narrativa? Como tu vê a relação entre forma e conteúdo?

Para ser sincero, eu às vezes penso que essa obrigatoriedade de uma relação entre forma e conteúdo, como muita gente costuma postular, é meio que superestimada, e segue demais a linha do texto enquanto coisa autônoma (e sagrada), de certa forma desassociada da pessoa que escreve. Não costumo pensar “nisso” especificamente. O que acontece, na verdade, é que eu gosto de experimentar. Gosto muito de “ah, vou fazer desse jeito aqui para ver o que acontece”. E aí o texto começa a tomar aquela forma e a coisa vai se entrelaçando nas muitas revisões e vou entendendo as dificuldades de cada escolha. É mais uma situação de fazer uma pergunta sem imaginar mesmo qual pode ser a resposta. E também de enxergar um lado lúdico e menos sagrado na escrita. Uma questão que me incomoda muito é essa sacralidade das letras, como se elas só pudessem ser manipuladas até “determinado ponto” e o resto fosse vaidade e preciosismo (o que, no fundo, é uma postura altamente conservadora). Acho que, desde que se busque uma consistência séria no trabalho, e desde que se estabeleça um diálogo, a gente tem mesmo é que enfiar o pé na porta e escrever do jeito que quiser o que a gente quiser.

 

Tu tá escrevendo algo novo, sim ou com certeza? Pode falar um pouco sobre o projeto e como está sendo o processo de criação?

Estou escrevendo e meio que me rasgando. É um texto extremamente pessoal e ainda tenho muitas dúvidas do que fazer com ele, ou como sustentá-lo dentro de um livro inteiro. Por enquanto é uma tentativa de imprimir minha cabeça no papel, sem muito planejamento, uma frase puxando a frase seguinte, e tem muita dor envolvida, e muito choro, e muito respirar fundo pra tomar coragem de expor aquelas questões que mais tenho medo de expor. Ao mesmo tempo está sendo bom, porque é olhar para si com uma lente de aumento e tentar arrumar a bagunça. “É preciso lutar com os inimigos que também são internos, porque somos adultos e quase sinceros”. O que vai sair daí é que ainda não sei, espero que algo que seja gostoso de ler.

 

A tua vertente fotográfica é muito forte. De que maneira o fotógrafo influencia o escritor, e vice-versa?

Engraçado que, até pouco tempo atrás, eu não tinha parado para pensar nisso. Quem me fez pensar mais no assunto foi Flor [Reis, do podcast Convite pra ser adulto], quando ela me disse que meu texto parece ter muito de fotojornalismo, apesar de ser fluxo de consciência, porque eu faço questão de deixar muito claro do que se trata cada cena. E é verdade. Eu gosto muito de fotografia. Na faculdade, participei do LabFoto/UFBA e achava que ia me profissionalizar enquanto fotógrafo. Mas aí as coisas foram mudando, eu fui mudando, e entendi que escrever livros me permite criar dentro de mim mesmo, o que, de certa maneira, é algo que eu precisava e ainda preciso. Mas a vontade de fotografar está sempre aqui no fundo. E me ajuda muito a pensar não só em questões de enquadramento, sombras, movimento, mas também, e talvez principalmente, não relação com o outro, em como ali, na frente da lente, você está conversando com a pessoa retratada – e como ali ela te mostra travas e vergonhas inconscientes que, de outra forma, não iriam aparecer. Acho que, para mim, no fundo, a grande relação entre fotografia e literatura é essa tentativa de olhar para além da superfície das pessoas e também por dentro de mim. Às vezes sai uma foto inutilizável. Às vezes sai uma foto bonita.

Davi Boaventura

Davi Boaventura é soteropolitano, nascido em 1986. Doutor em Escrita Criativa pela PUCRS, e graduado em Comunicação Social pela UFBA, publicou Talvez não tenha criança no céu (2012), Mônica vai jantar (2019), livro finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, AGES e Minuano, e 17 de abril (2021), além de ter organizado, em conjunto com o escritor Tiago Germano, a coletânea Ciências Contáveis (2019). Trabalha como tradutor, fotógrafo e consultor literário. E hoje mora em Curitiba, depois de passar um ano rodando de ônibus pelo Brasil.

Leia também:

Carolina de Marchi

Gecy Boaventura