
n.4 | ano 1 | mai 2022
Enxurrada
Carolina de Marchi
Seco os olhos com as mangas encardidas do casaco vermelho. Não foi só a chuva que me encharcou o rosto. Ainda sinto o gosto salgado das lágrimas misturado aos fios de cabelo.
No peito, nada.
No reflexo, eu.
Tenho pena de mim mesma nesse estado. A boca contraída, represa mais choro. Muita raiva de sentir pena de mim mesma. Patética.
Evito meu próprio olhar julgador no espelho iluminado pela luz fria tão típica dos elevadores.
~ Estéril ~
A porta metálica se abre e vejo: só escuridão. Dou um passo para fora, fecho os olhos, me refestelo um pouco mais no conforto do breu antes que as luzes se acendam automaticamente e banhem o corredor com um amarelo desmaiado.
Enquanto a mão busca às cegas o chaveiro de plástico na bolsa de pano, as pernas amolecem, se fazem um pouco pano também. Enfio as chaves com prazer no buraco da fechadura, giro o punho, a maçaneta torce. Estou em casa, e agora tudo pode diluviar de vez.
A cabeça coberta de xampu é massageada como quem revolve um vaso de terra.
~ Fértil ~
Tudo é mais calmo e fácil dentro da bruma do box, borrando o que eu não quero lembrar.
Eu queria ser uma planta hidropônica.
Um arrepio tímido me percorre o corpo, dos ombros até a virilha. Escorre pelas coxas.
É alívio? Solidão? Dor? Ou apenas sabão?
Sinto a espuma na pele: mil bolhinhas microscópicas e transparentes que de tão transparentes e de tantas se amontoam num turbilhão até se tornarem brancas e espessas.
É
macio.
Deixo os olhos entreabertos para sentir a cachoeira nos cílios. Nessa vista líquida, ouço o tom de voz dele e vejo seu corpo. Cuspo. Talvez fosse mais fácil se ele fosse um completo imbecil, se ele fosse mais um esquerdomacho, se o pau dele não fosse tão lindo. Que vá à merda com seu cheiro de erva doce e seu discurso sensato.
De repente, me sinto culpada. Por um instante.
Essa porra de culpa.
~ A culpa é da porra ~
Como uma perda escolhida, uma perda que eu mesma lavrei com tanto esmero, pode ser uma perda legítima dessa tristeza? Foi uma boa decisão, uma decisão inteligente. E de onde vem o constrangimento, então?
O incômodo de ser mulher me cavalga os músculos que um dia foram mais firmes, e me relembram que estamos sujeitas à moldura do tempo. A fúria dos limites impostos pela data de validade atesta: você, uma carcaça que se torna inútil depois de certa idade.
Eles não têm que lidar com isso.
Me pergunto quantas mulheres estariam passando por isso agora: milhões pelo mundo. Nesse momento. Quem está se lavando e chorando, sangrando por dentro. Cúmplices. Seguindo a vida, criminosas como eu. Ou morrendo. Ou quase. E quase não consigo retomar o fôlego ao pensar nas mortes, nos estupros, nas meninas que até gostariam de estar no meu lugar.
Passo o creme no cabelo lentamente, das raízes até a ponta. Massageio as pernas e a barriga com o que sobra nas mãos. Para emulsificar o produto. Ativar, diz minha cabeleireira.
Esse ventre que talvez um dia.
Será? Não, ainda não é a hora.
Ora, então quando seria, minha filha? Os trinta virando a esquina: e aí? As amigas, por outro lado, podem aplaudir. Algumas, por minha coragem. Outras, porque elas mesmas, no fundo no fundo, precisam de mais alguém que as absolva.
E só depois que os rios de todo o meu corpo se esvaem na enxurrada pelo ralo, levando todo o meu sedimento, que me sinto preparada para secar de novo o rosto.
Mais um passo para fora, hesitante e escorregadio. A imagem molhada no espelho.
Um pouco de sangue escorre entre minhas pernas e, antes que pinte o piso, me lembra do que realmente importa: estou viva.

Carolina de Marchi
foto: André Cherri
Jornalista independente com especialização em gestão e comunicação cultural, também sou pesquisadora de comportamento e me aventuro na literatura. Nasci em Porto Alegre e morei num punhado de lugares nos últimos 18 anos. São Paulo é meu lar hoje. Mas não por muito tempo: me assumi nômade permanente e estou construindo uma casa rodante para viver perambulando pela América do Sul. Atualmente, estou escrevendo meu primeiro livro — sobre uma grande viagem, claro.