n.1 | ano 1 | jan 2022

Hotel califórnia

Irka Barrios

Carmen veio me ver no verão. Eu insisti, não queria passar mais um Réveillon sozinha. Ela me fez jurar que comemoraríamos com jantar discreto. Nada de convidados, alguma bebida, nada de fogos. Cozinharíamos em casa. Estava um tanto mais assustada do que eu, a todo o momento citava alguma notícia que ouvira sobre a nova variante.

Desceu do carro arrastando uma mala pequena que produziu um trilho evanescente no gramado. O sapato de salto veio dentro de uma sacolinha de supermercado. “Para o dia 31”. Fora isso, não trouxe expectativas. Disse que os dois últimos anos tinham mudado sua forma de ver o mundo. Eu me recostei na cadeira e devo ter feito uma cara bem feia. Que inferno, pensei, Carmen aderiu à positividade tóxica. Vou passar a entrada do novo ano ouvindo sobre meditação e fluxo de energia. Durante o almoço, relaxei. Percebi que havia me enganado. Carmen deixou claro que se tornara menos consumista, menos vaidosa, mais resignada a respeito do avanço dos anos sobre sua pele, seus músculos e nervos.

“É a velhice. Temos que aceitar”, disse enquanto remexia o restinho de risoto que sobrara no prato.

Na manhã seguinte, protegidas com filtro sessenta, óculos e chapéus, escolhemos o lugar mais reservado da faixa de areia. Não havia muito barulho, as conversas dos outros banhistas mal alcançavam nossos ouvidos, a caixinha de som mais próxima emitia música brasileira num volume agradável. Ousamos até exagerar nas doses de caipirinha. Sonolenta e com uma leve dor de cabeça, comecei a recolher as coisas. Carmen quis se bronzear um pouco mais. Sugeriu que eu fosse para casa antes, tempo suficiente para que eu tomasse uma ducha e desocupasse o banheiro. Chegou vinte minutos depois, um pouco alta da caipirinha. Contou que viu uma coisa estranha, uma praia grande, cheia de edifícios. Eu concordei, ao norte havia Capão da Canoa, embora eu achasse que ali da minha prainha fosse impossível enxergar os prédios. Carmen respondeu que sabia onde ficava Capão da Canoa. Não falava de Capão, os edifícios grandes ficavam ao sul. Sem querer cortei o assunto. Ofereci um peixinho frito: “prova aí antes que esfrie”.

 À tardinha saímos para caminhar e Carmen voltou a falar dos prédios. Eu disse que não havia prédio algum na beira da praia, não assim, tão perceptível. Ela estava convicta, tão teimosa que me fez acreditar. Recuei das minhas certezas, talvez houvesse algo que eu nunca percebi. Ou um empreendimento de construtora milionária, desses que se erguem em poucos meses. Forcei a visão para enxergar, a bruma impedia. Depois ela confessou que era inútil tentar, não via mais nada, tinha enxergado melhor durante a manhã. Jurou e beijou os dedos cruzados. Ela me provaria. Antes de dar meia-volta, batizamos o lugar invisível: praia fantasma.

“Cadê a praia fantasma?”, eu a provoquei na manhã seguinte, logo que pisamos na areia. Carmen posicionou a mão acima dos olhos, como viseira. Procurou, procurou, acabou se rendendo: “hoje tá ruim de ver.” Bebeu sua caipira e me convenceu a caminhar para o sul, mais tarde, assim que o sol descesse. Se não encontrássemos os prédios, pelo menos valeria a caminhada.

“Olha lá”, ela disse, “tá vendo agora?”

“Não, desculpa.”

“Vamos um pouco mais?”

“Será?”, tínhamos caminhado quase uma hora.

“Só mais um pouquinho. Vamos. Vai que a praia fantasma é o Hotel Califórnia?”

Segui, só porque Carmen começou a repetir, com uma voz de criança, such a lovely place, such a lovely place, such a lovely face.

“Um lugar agradável”, eu disse.

“Que lugar agradável”, ela disse.

“Lovely não é amável?”

“É, fica estranho. Que lugar amável. Acho que a música quer falar de um lugar confortável.”

“Isso, agradável. Mas nem tanto. É um hotel fantasma.”

“Sabe que eu nunca tinha pensado nisso?”

Voltamos, era escuro. Eu não enxerguei os tais prédios e Carmen perdera um pouco da animação. Mesmo assim, assobiava a melodia da música.

Amanhecemos doentes, Carmen primeiro, depois eu. Não tínhamos sintomas respiratórios, mas intestinais. Carmen se enfureceu quando eu não quis ir até a farmácia fazer um teste. Disse que a doença se apresentava com sintomas diferentes em diferentes pessoas, cada organismo funcionava de um jeito, ela ouvira num de seus vídeos. Culpava-me pelas idas à praia, pelas caipirinhas, pelos descuidos. Sossegou ao retornar com o teste negativo e a informação de que havia uma virose a mais circulando na região, com origem na água. Expliquei o óbvio, a praia ficava superlotada em épocas festivas, nem dava para culpar os banhistas, ávidos pelo reencontro. Era bem possível que os serviços estivessem funcionando acima da capacidade. Nada mais de caipirinhas, prometi. O gelo do quiosque à beira-mar só podia ser de água da torneira, os molhinhos que acompanhavam as frituras deviam estar contaminados. Ok, nada mais de quiosque, estendi a promessa. Saí em busca de água mineral e passei a fervê-la antes de beber ou cozinhar. Em três dias melhoramos.

Na noite de Réveillon, Carmen usou o sapato de salto por quinze minutos. Assim que brindamos, ela o retirou e ofereceu a mim:

“Você trabalha com pessoas, com clientes. Vai aproveitá-los melhor do que eu. Nunca mais quero usar um troço desses na vida.” Não se deixou embriagar, a cada taça de espumante bebia um gole de água mineral. Mas chegamos àquele ponto de semi-embriaguez em que confessamos coisinhas, bobagens. Carmen disse que, fazia um tempo, buscava uma coisa.

“Que coisa?”, eu ri.

“Uma coisa, não sei.”

“Um amor?, um relacionamento?”, insisti.

“Não é nada disso”, ela respondeu meio brava. “Uma coisa muito mais especial, mais intensa. Uma verdade.”

Eu disse que buscar não era como querer e ela complementou que uma verdade podia não ser uma coisa boa. Mesmo assim, ela buscava isso, nem mesmo sabia o que era. Eu ia repetir a máxima “quem não sabe o que procura, não enxerga quando encontra”, mas achei melhor não.

“Posso, mesmo, ficar com o sapato?”

“É todo seu.”

No dia primeiro, ela me convenceu a pegar o carro. Passara a noite pensando na tal verdade que buscava e até sonhou. Achava que tinha tudo a ver com a praia fantasma e o papo sobre Hotel Califórnia. Dirigi pela estrada de asfalto que depois se transformava em barro, depois voltava a ser asfalto e então pedras. Até morrer numa duna.

“Para, para”, ela disse.

Estacionei, ela escalou a duna menor e depois a mais alta. Famílias se banhavam no mar, era quatro e pouquinho, devia estar gelado. Não ventava, mas o céu tinha algumas nuvens. Remexi no bolso do short para me certificar que tinha trazido o celular. O por do sol prometia belas cores.

“Vem ver, vem.”

Subi na duna.

“É lá, tá vendo?”

“Não.”

“Bom, eu não vejo muito nítido, mas consigo ver as estruturas. São prédios enormes. Tipo Dubai”.

E me puxou. “Vamos, vamos”. Acionei o alarme do carro e corri para acompanhá-la. Devia ter calçado um tênis, pensei. E meias, roupas apropriadas. Tomada por uma vontade fora do comum, Carmen caminhou por mais de hora. Avançava, retornava, me puxava. Vez ou outra entoava such a lovely place, algum mantra motivacional ou suas conclusões sobre a tal verdade. Andamos tanto, mas tanto, tive certeza de que enxerguei alguma coisa. Um vulto gigante, pouco nítido, mas, ainda assim, alguma coisa. Carmen se animou: “estamos quase, quase”. Pensei nas garrafas d’água que deixamos em casa, nos quadris e tornozelos, doloridos há mais de meia hora, nas solas dos pés arranhadas por conta da ação esfoliante da areia e em todo o trabalho de retornar, talvez desatolar o carro, dirigir de volta para casa. Em nenhum momento pensei em parar Carmen. Ela simplesmente não pararia.

Irka Barrios

 Irka Barrios é mestre e doutoranda em Escrita Criativa (PUC-RS) e UFRGS). Autora de “O coelho branco” (Prêmio Brasil em Prosa – Amazon, 2015), “Lauren” (Ed. Caos & Letras, 2019 – Finalista Prêmio Jabuti, 2020) e “Júpiter Marte Saturno” (Ed. Uboro Lopes, 2022). Colaboradora do Escuro Medo e da Revista Ventanas, professora de oficinas literárias na GOG Ideias. Atua na organização do coletivo Mulherio das Letras – RS.

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