
n.10 | ano 2 | ago 2023
maria silvia camargo
Entrevista
O que você registra no papel já não é o que aconteceu, é um recorte, uma recriação. (…) Revendo, você se distancia ou abraça aquele tema, é um exercício de olhar e de percepção — exercício de literatura.
Conta pra gente desde quando tu escreve diários. Por que tu começou esses registros?
Comecei aos onze anos, então são mais de cinquenta em atividade. Hoje acho que é porque sempre fui autora, e quando você é autor, escreve até quando dorme, não tem jeito. Intuitivamente queria ter minha voz, ideias próprias. Raciocino melhor por escrito. O mundo sempre me impactou, então o diário funciona como uma pausa, uma dilatação do tempo, onde procuro nomear e lidar com as coisas.
Em que momento os diários começaram a interferir na tua escrita de ficção? E como se dá essa interferência?
Demorei a entender que eles são meu laboratório de ficção, sempre interferiram. Porque o que você registra no papel já não é o que aconteceu, é um recorte, uma recriação. O hábito de ler o que escrevi no dia anterior ressalta isso. Revendo, você se distancia ou abraça aquele tema, é um exercício de olhar e de percepção — exercício de literatura. Como sempre trabalhei, às vezes em dois empregos ao mesmo tempo, com família e filhos, escrevia (escrevo) extensivamente, em pedaços de papel, guardanapos. Fui reunindo material impossível de guardar. Certa vez, numa mudança, revendo pilhas de diários, pensei: “se morrer amanhã, quem pode ler isso?”. Daí me veio a ideia para Quando ia me esquecendo de você, romance que construí a partir de oito trechos de diários meus.
Como tu vê a questão da exposição da intimidade nas escritas do eu? E da possível exposição de outras pessoas?
É uma questão delicada, um cristal prestes a se romper. Nesta era de exposição de tudo, há que se preservar o outro. A tua intimidade é um trato contigo: você finge, recria, escolhe o que contar e arca com as consequências. A intimidade do outro é sagrada. Claro que você irá escrever sobre o que conhece, mas não é por serem escritas de si que você não pode ficcionalizar, sublimar, colocar a figura da sua mãe abusiva, por exemplo, num espectro mais amplo, o que é mais difícil de fazer, né? Há quem escreva só por vingança, quando esse texto poderia ser mais político, universal. Se for só vingança, tenha a certeza de ter bons advogados!
Existe um “truque” pra gente identificar nas nossas escritas pessoais o que é literário ou o que tem potencial pra se tornar literatura?
Os temas que se repetem na sua escrita são a pista. Diário é autoconsciência, se lembrar de quem se é, não no sentido trágico, mas cômico (Eu sou? Do que falo enquanto reclamo?). Ler diários icônicos ajuda nessa investigação. Em Os diários de Emílio Renzi, Ricardo Piglia expõe seus experimentos, o que queria enquanto autor e o que entendia como literatura. Um deles é a questão do duplo, tema central da literatura: quem é o narrador (Renzi), quem é o autor (Piglia)? Nos diários de Virgínia Woolf, você aprende, entre outras coisas, a descrever cenários e como ela vai da árvore para a II Guerra Mundial. A brasileira Helena Morley (Minha vida de menina) é um baú de personagens do final do século XIX — melhor que muito livro de história. Outra pista é que o diário evidencia a distância entre a linguagem e a vida, então, ao reinterpretar e prosseguir, você soluciona muitos problemas de expressão, passa a ver os temas com distância, aprimora a escrita.
Que dicas tu tem pra quem quer começar a escrever diários ou escrever literatura a partir de si?
Diários e escritas de si são menosprezados pelo cânone literário, então, em primeiro lugar, esqueça isso. O diário só te pede periodicidade e constância. De resto, nele cabe tudo.
O principal: escreva. Comece sem pensar e não jogue nada fora (guarde na gaveta chaveada). Como na psicanálise: “que merda faço aqui sempre falando as mesmas coisas?” Se você quiser, aquela fala, o que te atingiu, muda. Anaïs Nin sustentava: o diário interfere na realidade de seu autor. Aprender a viver, a escovar os dentes ou falar com os outros, passa pela literatura. O registro que hoje te parece idiota foi selecionado por você para o papel, então, no mínimo, você o está enfrentando. Se tiver leveza e humor, melhor. Rir de si mesmo é fundamental.

Maria Silvia Camargo
Sou jornalista e autora (mestre pela PUC–RJ). Nasci paulista e me criei entre Recife e Rio. Deveria ir mais à praia, mas escrevo obsessivamente. Vinte e cinco anos em redações, três livros como jornalista. Publiquei Quando ia me esquecendo de você (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2013, que transformei em peça, com temporada no Teatro Ipanema); Quem é que te ajuda? e Leite de cadela. Participo da antologia de contos O resto é tempo e tenho, prontíssimo, o livro O buraco do mundo.