n.8 | ano 2 | jan e fev 2023

Taiane Santi Martins

Entrevista

Manter uma postura de aprendiz é uma das melhores coisas que você pode fazer por si mesmo e por seu texto. Pelo menos funciona para mim, não é sobre duvidar de si, mas se manter aberto a possibilidades diferentes.

Tu é uma pesquisadora da área de Letras. O teu embasamento teórico contribui para a tua escrita de ficção? Qual a relação entre esses dois campos para ti?

Até aqui passei a maior parte da minha vida adulta dentro da academia, não dá para achar que não sou atravessada pelo fato de ser uma pesquisadora. Dediquei seis anos ao estudo da obra de Ahmadou Kourouma, um escritor marfinense que, infelizmente, ainda é muito pouco conhecido no Brasil. O sol das independências, seu primeiro romance, publicado pela primeira vez no Canadá, em 1968, foi um marco na produção literária de países africanos francófonos. Uma de suas características mais marcantes foi incorporar à narrativa traços do malinke, sua língua materna, numa época em que isso seria considerado macular a língua francesa. Razão que fez com que Les soleils des indépendances só ganhasse uma edição na França em 1970, depois de ter alcançado amplo sucesso no Canadá. Não posso dizer que foi inocente, ou mesmo original, minha escolha de trabalhar com o emakhuwa em Mikaia. Já minha dissertação de mestrado foi uma análise da construção das vozes narrativas em Monné, outrages et défis, o segundo romance do autor, e como isso podia ser relacionado a ideia de uma construção de memória coletiva. Quando comecei a pensar o projeto de Mikaia queria seguir estudando a memória, mas por outra perspectiva, então criei uma personagem que na primeira cena se vê imersa numa amnésia repentina. Assim como Monné, outrages et défis, em Mikaia os múltiplos narradores são elementos estruturais da narrativa. Lembro de um dos primeiros comentários que o Assis Brasil fez ao meu projeto, me sugerindo trabalhar com um narrador apenas, seria mais simples já que estávamos falando de uma primeira experiência escrevendo uma narrativa ficcional longa. Você já sabe que eu não segui o conselho, não por discordância, mas porque a maior parte das minhas referências era de narrativas com múltiplos narradores, para mim era muito mais natural. O que quero dizer com isso é que mesmo as minhas escolhas mais intuitivas foram (e seguem sendo) atravessadas pelo fato de eu ser uma pesquisadora, é o que modela a forma como entendo, experiencio e pratico a literatura.

 

Pode aproveitar e contar um pouco do teu processo de escrita e da tua rotina de escritora?

Achei curiosa a sequência das perguntas porque comecei fazendo um mergulho na lógica rotineira dos meus 13 anos de vida acadêmica o que inclui muita pesquisa, método, dividir o processo criativo com aulas, colegas e professores, grupos de pesquisas, cumprir prazos absurdos, entregar relatórios e ser avaliada no final. E desde 2020 venho tentando entender como funciono fora da academia. Não tem sido fácil, porque além de termos atravessado dois anos de isolamento (e eu fiquei de fato bem isolada) é o primeiro momento, em termos de processo criativo, que sou apenas eu comigo mesma. Não sei para você, mas para mim concentração e criatividade foram tarefas hercúleas nesses dois anos que passaram. O que pude aprender sobre meu próprio processo foi que eu gosto mesmo de estudar, e escrever ficção, pra mim, é uma oportunidade de aprender, minha escrita não funciona bem sem pesquisa. É quase como se escrever romances fosse uma desculpa para continuar sendo estudante sem que possam me acusar de estar fora do mercado de trabalho. Além disso, a leitura em voz alta de meus textos é a base do meu processo de escrita e revisão. Gosto muito de um texto de Jean-Philippe Toussaint em que ele discorre sobre processos de escrita que ele chama de “a urgência” onde há um mergulho intenso e um fluir quase frenético em curtos períodos de tempo, e “a paciência” onde o tempo se distende, cada escolha é muito bem pensada e o planejamento se sobressai. Essa é uma explicação simplista do texto, mas serve para dizer que frequentemente me vejo oscilando entre esses dois estados. E que a leitura em voz alta é o elo que sempre me traz de volta para um texto, ou um projeto, quando me desconectei dele.

 

Tu trabalha com leitura crítica também. Tu sente alguma influência desse trabalho na tua escrita? Se sim, como?

Foi aí que entendi que sou escritora. Veja bem, comecei a fazer leitura crítica em 2020. A primeira versão de Mikaia já tinha sido escrita, defendida e aprovada com lindíssimos elogios frente uma banca formada por escritores e pesquisadores que são grandes referências para mim. Mas foi ao trabalhar com o texto do outro que entendi o quanto da minha formação eu tinha absorvido. Cada leitura que faço é um grande desafio, porque não se trata apenas de uma análise técnica. Há outra pessoa do outro lado do texto, e geralmente uma pessoa que está em formação. Fazer leitura crítica não se trata de apontar no texto do outro o que eu teria feito, como eu gostaria que fosse, não é sobre mim. É uma leitura que se propõe a mostrar caminhos para que aquele texto possa ser a melhor versão dele mesmo, respeitando suas características próprias, o estilo e conhecimento de cada um. Muitas vezes é mais difícil do que escrever o próprio texto, demanda mais flexibilidade, para trabalhar com gêneros diferentes dos que eu trabalho, pensar escolhas diferentes das que eu faria, ampliar possibilidades; demanda mais atenção e respeito porque é o trabalho de outra pessoa. Fazer leitura crítica me levou, primeiro, a ter mais segurança ao fazer as minhas próprias escolhas narrativas e, depois, a abrir uma oficina de escrita junto com a María Elena Morán.

 

O prêmio Sesc mudou o que na Taiane escritora?

A maior mudança é que agora sou lida. Mikaia foi lançado há dois meses, ainda estou descobrindo o que é isso de ter leitores. Tem sido uma experiência incrível ver pessoas que me conhecem há muitos anos e nunca conversaram comigo sobre literatura, puxarem o assunto porque leram Mikaia e querem discutir suas impressões. Ver na prática aquilo que já pensei conceitualmente tantas vezes: depois de escrito um livro já não é mais de quem o escreveu, mas de quem o lê. Perceber o que o texto tocou em cada pessoa me emociona de verdade. Fora isso acho que ainda é muito cedo para saber o que o prêmio mudou, sou defensora ferrenha de viver o presente da maneira mais intensa e inteira possível. É o que tenho me permitido fazer, viver de verdade todas as primeiras vezes que vencer o Prêmio Sesc proporciona. A experiência do momento é absorver que a primeira edição já esgotou e os exemplares da segunda chegaram essa semana na minha casa.

 

Para aqueles que estão escrevendo seus romances de estreia, que dicas tu pode dar?

Procure uma leitura crítica (aqui você me imagina dando uma risada travessa). Eu sou um pouco piadista, não resisti. Mas ainda que possa ser promoção da classe, também pode ser um bom conselho. Um olhar de fora, mais ainda um olhar especializado, é uma boa forma de questionar e entender o seu próprio processo criativo e a partir disso aprimorá-lo. Manter uma postura de aprendiz é uma das melhores coisas que você pode fazer por si mesmo e por seu texto. Pelo menos funciona para mim, não é sobre duvidar de si, mas se manter aberto a possibilidades diferentes. Ninguém nunca perdeu nada por aprender alguma coisa. Isso não se reduz a procurar uma leitura crítica, dá para fazer oficina de escrita, conversar sobre suas ideias e escolhas narrativas com as pessoas que você confia, especialmente as que entendem alguma coisa de literatura, fazer perguntas, ler livros diferentes do que você está habituado, consumir outras formas de arte, estudar sobre o processo criativo de pessoas que você admira, a lista de possibilidades é imensa. Mas antes disso tudo acredite de verdade no que você está escrevendo, escrever exige da gente de tantas maneiras que se você não acredita as coisas meio que perdem o sentido. E era isso, porque mais um pouco vou pedir meu crachá de coaching literária.

Taiane Santi Martins

Foto: Davi Boaventura

Sou escritora, mas também domei meu próprio cavalo. Nasci gaúcha, mas prefiro o mundo. Escrevo meus textos com o mesmo empenho que construo uma parede de pau a pique. Escolhi a Ilha de Moçambique para chamar de lar e escrever Mikaia, meu primeiro romance, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2022. Voltei trazendo mais um projeto de livro de poemas no bolso e uma saudade de muitas vidas. Em 2010, criei a Travessa em Três Tempos e a edito até hoje. Trabalho com leitura crítica, na Leio seu livro, junto com o escritor Davi Boaventura.

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