Como editar o próprio texto?

É um pouco complicado falar de edição de texto de um jeito universal, porque existem várias pessoas e empresas que usam diferentes nomenclaturas para esse tipo de trabalho, assim como um mesmo nome pode se referir a um serviço diferente. Já encontramos pessoas que anunciam o serviço de leitura crítica, mas fazem o mesmo que nós fazemos na edição, por exemplo. E, em muitos casos, o que a gente da Baubo chama de edição ou preparação, em alguns lugares é tratado como revisão. E tudo bem, um dia talvez alguém decida padronizar esses termos, mas o mercado literário tem outros assuntos com que se preocupar (não falaremos deles aqui).

A edição é um processo da escrita e da leitura concomitante que todo mundo que escreve faz, mesmo sem notar. Quando você digita uma palavra e apaga para usar outra melhor, isso é edição. Mas durante o processo de criação, é muito comum, mais do que comum, é em 99% dos casos (dados do IVNC*), que o olho se acostume com o que está lendo e pare de ver os problemas.

Algo parecido acontece com questões mais amplas, como o enredo e a coerência dos personagens. Pra nós, está tudo evidente, as conexões e os símbolos fazem todo sentido, as relações de causa e efeito estão amarradinhas feito cadarço de marinheiro. Só que as pessoas do lado de fora da nossa mente não têm as mesmas referências e podem não se dar conta, por exemplo, que vovô Abílio tem mais de noventa anos e é por isso que vem confundindo a neta com a filha quando as chama para pedir ajuda. A quem lê, se você não insere essa informação em alguma parte do texto (seja de maneira explícita ou com pistas sutis mas evidentes aqui e ali) parece apenas uma confusão nos nomes que ninguém percebeu — que gafe, que erro, que absurdo o que se tornou esse mercado editorial!

É aí que entra a edição do original. Você mesma pode fazê-la, se deixar o texto descansando algumas semanas ou meses longe dos seus olhos. No entanto, há grandes chances de mesmo assim deixar coisas importantes passarem. No exemplo do vovô Abílio: pode ser que para você, a simples troca dos nomes nos diálogos já indique tudo o que está querendo dizer, e só vai descobrir que não depois que o livro estiver publicado e as pessoas chegarem para você na fila do supermercado para avisar que tem um erro ali naquele capítulo.

É claro, a Baubo faz esse serviço, sim. No fim do artigo vamos falar sobre como ele funciona. Mas existem alguns bons truques para que você possa realizar sua própria edição**. Confira abaixo alguns deles:

Deixe o texto decantar

Falamos na introdução, mas não custa reforçar esta dica: deixe o texto longe de seus olhos pelo menos por alguns dias. Por aqui, chamamos isso de “decantar”, porque esse tempo separado vai fazer com que você veja as “impurezas” do texto com as quais você já estava acostumada. Com esse método, você vai conseguir captar problemas globais de estrutura, coerência e verossimilhança, enfim, o que você enxergaria se estivesse lendo o texto de outra pessoa.

Mas, Baubo, eu tenho pressa!

Ter pressa é, por um lado, bom. Vai impedir que você fique enrolando e adiando o momento de publicar — afinal, o livro só dialoga com o mundo quando é exposto a ele. No entanto, dar ouvidos apenas à pressa vai, com toda a certeza, prejudicar a qualidade do seu manuscrito. É preciso encontrar um equilíbrio — como dizem: um pouco de droga e um pouco de salada — entre os anseios e o trabalho. Infelizmente ainda não temos dicas para encontrar esse nirvana, mas exercitar a paciência é fundamental e cada pessoa tem seu jeito de lidar com ela. Encontre o seu.

Mas, Baubo, eu tenho memória de elefante!

Se você não consegue esquecer o texto de jeito nenhum, então realmente não pode ter pressa. Deixe ele trancafiado numa gaveta, peça pra uma amiga (com boa memória também) colocar uma senha na pasta de arquivos do computador e só revelá-la a você dali um bom par de meses, e vá escrever outra coisa. O bom disso é que a nova produção vai tirar a sensação de estar perdendo tempo. Depois de algumas semanas, são grandes as chances de você estar tão absorta no novo projeto que o texto trancafiado vai até parecer escrito por outra pessoa. E todo mundo sabe que é muito mais fácil achar defeito no texto dos outros.

Mas, Baubo, eu tenho prazo!

Então, considere editar seu original usando a dica a seguir:

Mexa na formatação

Durante a fase de isolamento da pandemia, a Cacá (para quem não sabe, uma das metades da Baubo) fez uma oficina com o Marcelino Freire (pra quem não o conhece: conheça) e um dos exercícios consistia em diagramar o próprio livro, uma brincadeira lúdica, já que poucos ali na turma tinham conhecimento para fazer isso de verdade, mas que ajudava a entender a alma do projeto. E sabe o que aconteceu? Vários problemas do texto saltaram aos olhos dela, simplesmente porque as frases estavam dispostas em outro formato, com outras quebras de linha e com uma mancha*** diferente da do arquivo de word. Algum tempo depois, trocando ideias a respeito, a Julia (a outra metade da Baubo) contou que gosta de mudar a fonte do texto para vê-lo com um olhar fresco.

Então, diante de mais essa pesquisa do IVNC, testemunhamos: mexer na formatação do texto auxilia a tomar uma certa distância dele. Meio como quando a mãe corta o cabelo bem curto e a criança chora porque não a reconhece de imediato, sabe? Salvar o texto em PDF também auxilia a criar essa ilusão de afastamento do texto.

Mas, Baubo, minha deusa, eu não faço ideia de como fazer esse tipo de mudança…

Então você está no artigo certo!

Pensando nessa dificuldade, preparamos um pequeno e humilde manualzinho de como mexer nas margens do texto de um jeito muito, muito fácil — no Word. Basta ir em Layout – Margens, e escolher a opção “Larga” para ter uma formatação similar à dos livros impressos:

Aos adeptos do Google Docs, fica um pouquinho mais difícil, mas nada desesperador: em Arquivo – Configuração da página, vai abrir uma janela onde você terá de digitar os centímetros que deseja na sua formatação.

Ataque os vilões de sempre

Na Baubo, não somos adeptas de regras rígidas. A nossa única é: tudo tem que fazer sentido dentro da proposta do texto. Se você tem um narrador enrolado e prolixo cuja maneira de narrar dá uma camada a mais para sua história, então pode esquecer a economia de palavras. Se você gosta de usar um monte de adjetivo, não tem problema, desde que faça com consciência e consistência, e o uso esteja conectado ao enredo ou à personalidade da protagonista de forma original. Entendeu a ideia, né?

Pois bem. Existem vilões conhecidos de todas nós que, utilizados sem intenção, de fato prejudicam o texto. Considere analisá-los. Vamos a eles:

Repetições de palavras e ideias

Repetir palavras é comum e cada vez mais aceito na escrita contemporânea. Se você já apresentou uma personagem como “vovô Abílio”, não faz sentido ficar buscando sinônimos como “o idoso”, “o pai de minha mãe”, “o homem enrugado” etc. Vovô Abílio já é nosso vovô, não o chamaremos de outra coisa.

No entanto, algumas palavras se repetem sem propósito, como se sugerissem uma certa preguiça na hora da escrita. Veja a frase abaixo:

“Entramos em casa depois que removi a encomenda em frente à porta. Vovô Abílio foi na frente, mancou até sua poltrona em frente à TV da sala de casa e sentou-se. Depois, reclamou que a almofada do encosto de sua poltrona machucava suas costas, a removeu com dificuldade e atirou-a no chão à sua frente. Entrei na casa por último e fui até a cozinha largar a encomenda e buscar um copo de água e vi quando o encosto da sua poltrona, que era reclinável, caiu para trás jogando vovô ao chão numa cambalhota.”

Muitas palavras iguais, não é? O texto fica com um aspecto poluído e repetitivo, num tom quase infantil. “Casa”, “remover”, “encomenda”, “poltrona”, “chão”, “frente” etc., são palavras de aspecto neutro, estão a serviço da construção da cena, mas não têm relevância para o cerne da narrativa. Que tal a versão abaixo?

“Peguei a encomenda e entramos em casa, vovô Abílio na frente. Ele mancou até sua poltrona, sentou-se, ligou a TV. Depois, reclamou que a almofada machucava as costas e se contorceu para removê-la. Larguei o pacote na mesa da cozinha e, enquanto me servia de um copo de água, vi o encosto reclinável cair para trás, jogando vovô ao chão numa cambalhota.”

O corte das repetições acabou criando novas relações entre as frases, deixando o texto com mais movimento e ritmo, mais rico.

Para realizar esse tipo de análise, você pode fazer buscas automáticas em trechos menores, como parágrafo a parágrafo, e depois ir ampliando.

Pronomes possessivos desnecessários

Você deve ter percebido, também, que eliminamos boa parte dos pronomes possessivos. Quase todos, exceto um, quando vovô senta na “sua” poltrona. Este pronome traz um significado extra, nos diz que vovô Abílio só senta nela e, muito provável, sente ciúmes dela. Ao final do trecho, ela o trai. Portanto, esse pronome é necessário. Os outros não. É evidente, por exemplo, que são as costas do vovô que se machucam com a almofada, não precisamos dizer que pertencem a ele.

A repetição de ideias

Um pouco mais difícil, e deixar o texto decantar vai facilitar a identificação deste problema. A repetição nesse caso basicamente acontece quando, seja para aumentar um parágrafo, seja para relembrar algo que já foi dito, trazemos uma mesma ideia dita com palavras diferentes.

“Vovô Abílio pegou na minha mão e disse:
— Você precisa crescer, amadurecer, eu não estarei aqui para sempre cuidando de você.
Pensei muito nisso depois, levei para a terapia.
Eu preciso me tornar adulto — disse para a psicóloga, e o fato dela não refutar me deixou amuado.

Eu não sei você, mas em “amadurecer” eu já comecei a pensar Ok, ok, entendi. Para que uma repetição funcione, é importante que se acrescentem camadas de significado a cada vez que, nas entrelinhas, a ideia é resgatada. Como se você dissesse à leitora: “já falei nisso antes, espero que tenha notado”. Uma possível reescrita deste trecho poderia ser:

“Vovô Abílio pegou na minha mão e disse:
— Eu não vou viver para sempre.
Pensei muito nisso depois, levei para a terapeuta.
— Não quero me tornar adulto — confessei. Ela não refutou, apenas disse minha idade em voz alta.

Também eliminamos desse trecho a repetição da informação de que o personagem está na terapia (“levei para a terapia” + “falei para a psicóloga”) e a ideia de que o assunto o chateou (“pensei muito nisso depois” + “levei para a terapia” + “me deixou amuado”). Além disso, acrescentamos uma camada de significado e um ponto de conflito ao mudar “eu preciso me tornar adulto” para “não quero me tornar adulto”, o que evidenciou o drama entre o narrador e seu avô. Por fim, trocamos o sentimento, “me deixou amuado”, por uma ação, “disse minha idade em voz alta”, o próximo tópico que vamos discutir.

Verbos de pensamento

São conhecidos os “36 Writing Craft Essays” (em tradução livre: “36 ensaios sobre o fazer literário”) escritos por Chuck Palahniuk nos quais, entre outras coisas, ele advoga contra o que chama de “verbos de pensamento”. A grosso modo, são verbos que não denotam ação: pensar, lembrar, sentir, cogitar etc. Entre eles também estão muitos dos sentimentos em si: amar, odiar, desprezar etc. Para ele, esses verbos representam abstrações que deveriam ser concretizadas, exibidas no texto na forma de atitudes e diálogos.

É uma ideia herdada das teorias do cinema e do estilo de escrita estadunidense predominante, o que faz muita gente torcer o nariz. Mas ela tem o seu valor, especialmente quando a narrativa não tem um tom intimista ou, digamos, metafísico. Clarice Lispector usa muitos desses verbos, por exemplo, mas preste atenção como eles estão, na sua maioria, conectados a elementos concretos e fogem do senso comum.

Se nosso texto não se propõe a isso, o excesso de verbos de pensamento vai deixá-lo monótono, sem as conexões surpreendentes que aparecem quando fugimos deles. Na cena com vovô Abílio, não eliminamos todos esses verbos, “pensei” permaneceu. Mas a mudança no final aliviou essa questão, e a solução deixou o texto mais inventivo, atraente e visual.

Então, a moral da história é: não fique louca atrás de todos os verbos de pensamento do seu texto. Elimine-os quando estiverem em excesso, a menos que o excesso esteja ali de propósito. Neste caso, certifique-se de que você não está na ceara do senso comum.

O senso comum

Este vilão demanda muita leitura e conhecimento da língua, das pessoas, do universo e tudo mais. Mas se livrar dele não é tão difícil quanto parece. Até porque você não precisa eliminar ele de todo o texto — já que ideias em comum são o que dão a base da nossa conexão via linguagem (outra teoria idealizada no IVNC). O senso comum prejudica o texto quando ataca elementos importantes da nossa narrativa.

Na cena do vovô Abílio analisada acima, a fala “eu não vou viver para sempre” é uma frase comum, muito dita por pessoas reais e personagens de filmes e livros ao longo dos séculos e séculos de existência da humanidade, ainda mais com o significado subjacente de “não vou estar sempre aqui para resolver seus problemas por você”. Quantas vezes já ouvimos isso das pessoas que nos criaram?

Talvez fosse mais interessante que vovô dissesse algo do tipo:

— Não demora muito, tu vai ter que encomendar meu caixão. E aí, como vai ser?

Mais personalidade para o vovô, sem mudar o significado da conversa.

Além disso, é bom evitar expressões muito desgastadas, como narizes aduncos (existe uma infinidade de formatos de nariz) e manhãs chuvosas ou ensolaradas (cogite ignorar as condições climáticas que não fazem diferença para a história ou faça-as interagir com o personagem), “noite de lua cheia”, “silêncio ensurdecedor” etc.

E na Baubo vocês prestam atenção em tudo isso quando preparam o original?

Agora vamos vender nosso peixe, seguir a leitura é veementemente opcional.

Sim, prestamos atenção nisso tudo, tomando sempre o cuidado de entender a proposta do texto. Não sugerimos mudanças desembasadas e, quando fazemos (raras) observações de gosto pessoal (a Cacá odeia cenas em que as personagens se olham no espelho como um símbolo de mudança, de não se reconhecer mais, por exemplo, e luta contra elas sempre que pode) deixamos bem claro nos comentários que se trata disso.

Também prestamos muita atenção em inconsistências no enredo e na personalidade dos personagens. Atentamos para a verossimilhança, para o ritmo e para a clareza das frases. Reposicionamos trechos e cenas levando em consideração fluidez e necessidades narrativas (para manter um mistério, aumentar a tensão etc.). Debatemos ideias que precisam de mais desenvolvimento, avisamos quando algo fere grupos minoritários e cuidamos para que as intenções de quem escreve estejam alinhadas ao longo de toda a narrativa. Analisamos se existe um conflito bem trabalhado, se as personagens têm profundidade, se o narrador faz sentido. Entre outros vários elementos que fazem a diferença para um bom texto.

Boa parte dessas análises são muito difíceis de realizar na nossa própria escrita, e é por isso que recomendamos a busca por leitoras qualificadas e dispostas à leitura ativa e profunda. Não precisa ser a gente, né, pode ser alguma colega escritora em quem você confia, ou mais de uma (melhor até que seja).

Como somos duas leitoras na Baubo, além de oferecermos dois pontos de vista que, muitas vezes, apresentam contrapontos, complementamos a análise uma da outra, observando elementos distintos e captando aquilo que, às vezes, nos escapa.

Se você se interessou pelo nosso serviço, manda um e-mail pra gente. Enviaremos uma amostra grátis e um orçamento sem compromisso.

*Instituto Vozes da Nossa Cabeça — só que baseado em experiência
**Uma boa editora vai realizar esse trabalho antes de publicar seu livro (se não fizer, cogite a possibilidade de buscar outra editora), mas é sempre bom enviar o original o mais redondinho possível.
***Mancha é o nome do espaço que o texto ocupa na folha.

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