Como escrever o silêncio?

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A pergunta do título é uma que me acompanha há anos. Quem gosta de ler sabe que, para criar a sensação de silêncio, não basta dizer “ficaram quietos”, não basta dizer “e depois se calou”, não basta dizer “não falou nada”. A gente passa os olhos por essas frases e mal pensa nelas.

O silêncio se estende no tempo, e tentar contraí-lo em uma frase ou uma palavra será sempre inútil. A gente quer criar aquele momento de silêncio prolongado e cheio de tensão, e as palavras parecem sempre nos trair. Também não serviria inserir páginas em branco no livro: o leitor as atravessaria em um segundo. Então como escrever um silêncio que precisa durar mais do que um instante? Como pedir ao leitor que viva com os personagens a suspensão das palavras por um momento ou dois? Que obrigação teria o leitor de nos obedecer quando lhe pedimos, mais que o tempo da leitura, ainda o tempo do silêncio?

Nesse quesito, tenho certa inveja do cinema, tão hábil em colocar o silêncio em cena. Basta que os personagens estejam de corpo presente e não digam nada e já temos alguma espécie de silêncio (embora ainda haverá ruídos de fundo, os sons do ambiente onde se assiste etc.). Mas nós seguimos em contato com as personagens: talvez eles se movam ou apenas se encarem, mas continuam ali conosco. Enquanto os personagens literários precisam da palavra para existir, o personagem de cinema precisa apenas da imagem.

Como escreveu Jean-Claude Carrière, “o cinema ama o silêncio – e, nele, o som de um suspiro fundo. É especialista em povoar o silêncio, em escutá-lo às vezes para melhor destruí-lo. Também pode colocar dois silêncios frente a frente, como em O boulevard do crime, em que vemos emoções literalmente indescritíveis percorrerem silenciosamente o rosto branco de giz do mímico”.

Naturalmente, o silêncio na literatura é de outra natureza. Quando penso em escrever o silêncio, estou pensando em dar espaço ao pensamento do leitor. Minha busca é pelo silêncio que reforça um sentimento, prolonga uma reflexão ou reforça uma sensação. Sempre há certo mistério no silêncio, como se algo se ocultasse. Como colocar em palavras esse aspecto denso do silêncio? Posso fazer os personagens caminharem de um lado a outro da sala, eles podem se observar em uma cena sem diálogo, posso descrever expressões faciais. Mas o tempo todo a voz que na cabeça do leitor faz a leitura estará falando, não pode ficar em silêncio a não ser que interrompa a leitura.

Poderia recorrer à diagramação na tentativa de dizer ao leitor que se demore um pouco mais aqui, nessa linha saltada, nessa página pouco preenchida. É um recurso que pode funcionar nas mãos de alguém talentoso como Afonso Cruz, neste poema do livro Os pássaros:

Estava com vontade de te dar alguma coisa
uma coisa especial,
disse eu a Inês,
mas, ao contrário do meu vizinho,
não tenho piscina para nadarmos juntos no verão.
Por isso limito-me a oferecer-te
um pássaro a voar
ao fim da tarde.

Ali.

Olha.

Em todo caso, as reações do leitor estarão, inevitavelmente, fora do controle de quem escreve. O leitor pode pular a página, ignorar a pausa. Não posso obrigá-lo a parar. Não posso nem dizer: leia mais devagar. O domínio sobre o tempo do receptor é um privilégio do cinema: uma cena dura o quanto dura. Claro que nisso também há riscos. Novamente, Carrière: “Num filme, a pausa se torna imperativa, o espaço se converte em tempo. E esse tempo ameaça romper a narrativa, debilitar seu interesse, ainda que o cineasta possa considerar fundamental esse momento de descanso, como se fosse uma parada, à beira da estrada, dentro da história, para contemplar um crepúsculo ou uma bela paisagem”.

O mesmo perigo existe na literatura: uma descrição alongada demais que tinha o objetivo de criar um descanso pode acabar fazendo com que o leitor nos abandone. É um equilíbrio difícil. Para Susan Sontag, a saída talvez seja colocar a palavra contra a palavra: “a linguagem pode ser empregada para conter a linguagem, para expressar mutismo. Mallarmé pensava que era tarefa da poesia, utilizando as palavras, limpar a nossa realidade atravancada de palavras – através da criação de silêncios ao redor das coisas. A arte precisa montar um ataque em ampla escala contra a própria linguagem, por meio da linguagem e seus substitutos, em benefício do modelo do silêncio”.

Quer dizer, talvez seja necessário que a palavra esteja ao redor do silêncio para que este exista. Como coloca Sontag, o silêncio nunca deixa de implicar seu oposto: assim como não pode existir em cima sem embaixo, é necessário reconhecer um meio circundante de som para localizar o silêncio.

A melhor maneira de criar o silêncio parece ser forçar o leitor ao silêncio. O escritor pode tentar tirar o fôlego do leitor, obrigando-o a uma pausa para descanso ou para reler o trecho que o nocauteou. Pode tentar fazer com que o leitor transborde de emoção e precise de um momento para se recompor. Pode induzir a uma reflexão, deixar um pensamento no ar e torcer para que o leitor tome um segundo para completá-lo. Mais do que isso, não somos capazes.

Uma nota extra-literária:
Vale lembrar que o silêncio é uma utopia tão inalcançável que nem sequer John Cage conseguiu encontrá-lo, e ele não poupou esforços para tentar. Investigador do campo musical, John Cage visitou a câmara anecoica da Universidade de Harvard em 1951. A câmara é capaz de isolar todo ruído externo, e Cage se enfiou ali dentro para finalmente estar em silêncio absoluto. Porém, uma vez fechado, ele continuou escutando ruídos que não identificava o que eram. Segundo o técnico de som, eram seu batimento cardíaco e o som do sangue que corria em suas veias. Ou seja, nem mesmo na completa solidão, estamos em silêncio.

Referências:
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. São Paulo: Nova Fronteira, 1995.
CRUZ, Afonso. Os Pássaros: (dos Poemas Voam Mais Alto). Lisboa: Apcc, 2014.
SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

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